domingo, janeiro 13, 2008

O último quadro


A tampa do baú abriu-se renitente, exaltando as dobradiças a soltar um gemido que denunciou a tentativa de recordar o passado.
Entre memórias velhas, encontrara imagens e escritos a que o pó não se agarrara, por respeito ao tempo que já passado, se encontrava tão presente como o dia anterior.

Havia decidido dar-se na forma e jeito das imagens de antanho a que dedicara a arte e o engenho. Tomara-os como o que de mais precioso guardava como oferta primordial, reservada aos altares do pensamento, onde se despia de si mesmo para dar lugar aos outros que lhe eram especiais.
Pegara nos desenhos e poemas que tinha feito em momentos de loucura, à mingua de um pouco da felicidade que encontrara apenas no final de cada realização. Pegou em cada um deles e vestiu-os do sentimento de cada pessoa que quisera ali com ele e naquele momento, numa moldura que os juntasse sempre e a todos, como numa última ceia, onde se vestissem de apóstolos sem qualquer Deus mais alto que o mais humilde dos presentes.
Prontas as ofertas, foi-se distribuindo a ele mesmo pelos demais, num gesto e dádiva diferentes em cada rosto que buscara, num cerimonial único de entrega, onde apesar de tudo, via-se saindo mais enriquecido no vazio que lhe restava.

Finda a caminhada e não encontrando mais ninguém, havia ainda um quadro que sobrava na ausência dos que lhe faltavam. Dura era sempre a falta, mesmo que precária pela distância, fosse do tempo ou do espaço. Não poderia assim, ofertar de si, nada que fosse material, condição imposta que assim seria a contento de quem a quem quisera fazer homenagem.
Vencido agora pela distância, mais do que pelo intento, inconformou-se pelo caminho que percorrera e seguindo, mais só e mais além, da margem atirou ao rio aquela que era a sua última obra.

De ora em diante, diriam os pescadores, que em noites de lua cheia, seriam encantados pelo olhar de menina, numa mulher de face de porcelana emoldurada por longos cabelos de seda. Emergia esta, das águas que a viram nascer, carregando nas mãos um quadro pintado da cor da noite, trauteando uma canção suave de embalar.
A tampa do baú fechava-se agora condescendente, acompanhando as dobradiças oleadas pelo silêncio com que iam guardando o presente.

6 comentários:

Sha disse...

Sensível e bela a tua forma de relatar algo tão triste e desolador.
Partilho esse desgosto e amargura. Tantas vezes tive o esse tipo de sentimentos... e pelo mesmo gesto. E o meu foi sempre um gesto carente, em muito semelhante ao que descreves. A única diferença é que no meu gesto não estava implícito um adeus, uma dádiva de desfecho ou um grito de alerta para a minha solidão.
Nunca eu me dei aos outros em momentos de isolamento (e quando digo isolamento não me refiro a retiro). Esses momentos foram sempre só meus, sentidos e vividos e ultrapassados a sós comigo mesma. Porque são outros os que prefiro partilhar e esses sim, os que sempre me moveram em ofertas.

Sabes, eu gosto e sempre procuro ler nas entrelinhas, indagando o que está por detrás das letras. E vejo, por entre as tuas, quadros esboçados em suaves e harmoniosos traços, que darão belas e coloridas obras-primas assim o pintor se permita nelas retratar-se.
E vejo uma tela em branco, à espera apenas de alguém que, com o engenho e arte dos sentimentos, misture as cores e se deixe levar pelas cerdas do pincel da vida:
"Não poderia assim, ofertar de si, nada que fosse material..." – as ofertas mais duradouras e inesquecíveis são as que não se palpam com as mãos, mas que transbordam da alma de quem as oferece e preenchem sobremaneira o coração de quem as recebe.

Perdoa o longo comentário.
A tua escrita é, sem dúvida, uma inspiração.
Parabéns.
Sha

Ana Luar disse...

Tão triste, como belo.
Diria mais... Este é um texto tatuado, um dos mais belos textos que li escritos por ti.

Beijo-te

Joaquim Amândio Santos disse...

o que é o conhecimento?

visão directa do corpo e da atitude?
prolongado caminho nem que condutor à saturação encapotada?

Vivência superficial feita de fait-divers e não de curiosa partilha sem hora nem condicionalismos marcados?

Será assim tão impossível iniciar o conhecimento na distância? julgo que não e defendo tal desiderato.


EIS A MINHA HOMENAGEM AOS BLOGGERS, ESSES INCANSÁVEIS CRIADORES DE LAÇOS!

Maria Inácio disse...

Olá Rui!
É sem duvida um texto com alguma dor e sentimento mas ao mesmo tempo com muita beleza!
Faz algum tempo que nao te venho visitar, se passares pelo me cantinho irás preceber o porque.
Deixo-te os meus votos de um Ano Novo cheio de coisas boas...

Um desejo de um otimo fim de semana e um abraço.
fatima

Gasolina disse...

Há gestos que têm a dimensão de um mundo inteiro: dar o que de si é, seja em riscos, seja em felicidade pequena pela obra completada, seja cortar amarras com um último pedaço de lembrar e de doer.

Mas o presente nunca se silencía.

Beijos

*Um Momento* disse...

Li... senti...

Deixo um beijo e o desejo de uma boa semana

(*)