quarta-feira, abril 16, 2008

O sonho de Amir


O deserto de Abd-Al-Rahman fora em tempos uma região verdejante e plena de vida, tendo-se tornado por isso, local de passagem para as caravanas de mercadores, que aí faziam repousar-se a si e aos seus camelos, entre jornadas sucessivas sob um sol ardente.
Guerras e disputas de clãs rivais acabaram por dizimar, tanto a região como os que nela viviam ao ritmo de memórias das árvores que outrora se estendiam em formas caprichosas, oferecendo generosas sombras aos viajantes, ao som do canto dos pássaros que teciam vôos ondulados de cortejo.

Amir, era um jovem moreno. Perdera como os demais, tudo e todos, restando-lhe apenas um pequeno fio de pérolas, recordação de um antigo colar que pertencera a seus pais e que guardava cioso da sua origem e dos tempos em que corria feliz para o colo materno ante o sorriso complacente do pai, a quem gostava de acompanhar nas jornadas.
Naquele dia, Amir como habitualmente fazia, repousava junto a uma velha palmeira que como ele, tornaram-se os únicos que ainda resistiam naquele local, agora deserto e onde as sombras se haviam tornado fantasmas impávidos do passado. Ele desejava acima de tudo, que o destino lhe desse um amigo com quem pudesse partilhar o estar ali, à míngua daquela solidão que mal entendia e a custo suportava.
Na companhia de ninguém e na falta de outro mister que não fosse o de buscar o alimento diário para o corpo, Amir deixou-se adormecer sobre o leito de areia fina que o sol dourara, agora amaciado pela sombra que a velha palmeira guardava de sentinela. Dobrara um dos braços para na mão receber a cabeça, servindo de almofada, enquanto a outra estendida acompanhava o corpo, para no final repousar a mão sobre o bolso dos calções de caqui, qual guardiã do seu único tesouro que ali guardava a coberto do mundo.

Durante o sono amolecido pelo calor omnipotente que tudo cobria, Amir teve um sonho, no qual viu aparecer-lhe uma mulher idosa e curvada pela aparente idade. Tinha uma expressão esbatida pelo tempo e um sorriso de traço fino e discreto, formando um conjunto que se condensava num olhar maternal e meigo, de um brilho suave e cálido, onde a alma se embala só de ver. Aquela figura, que embora desconhecida lhe parecia familiar, olhou para ele e disse-lhe “Amir, se queres um amigo, levanta-te e busca-o e quando o encontrares, dá-lhe o que de mais precioso de ti tiveres”.
Amir acordou sobressaltado. O sonho que tivera, parecera-lhe tão real que o aroma a rosas que agora sentia no ar, ainda o confundia mais. As palavras que ouvira, repetiam-se na sua cabeça em ecos de ninguém, qual ordem que embora confuso, estava a pondo de obedecer.
Após hesitar durante alguns momentos, Amir decidiu seguir o conselho que recebera durante o sonho.
Levantou-se, recolheu uns poucos víveres para a viagem e seguiu ao acaso, por um dos caminhos que as caravanas de mercadores costumavam usar outrora.
A dois dias de caminho, encontrou outro jovem que como ele, se encontrava só, dedicando-se ao cultivo da terra que herdara dos pais e de onde extraía o magro sustento. Amir, ofereceu-se para o ajudar no trabalho diário.
Com o passar dos dias, Amir apercebeu-se que o jovem amigo passara gradualmente a delegar nele o trabalho que antes era repartido pelos dois e que assim a sua boa vontade estava a ser usada em proveito injusto. Cansado da situação, Amir decidiu partir e apesar da razão que o levou a tal decisão, ele estava grato pela companhia do amigo e por isso decidiu oferecer-lhe uma das pérolas que sempre guardara ciosamente, para que o amigo ficasse com uma recordação indelével dele.

Assim, Amir retomou a viagem, na intenção de busca de alguém que pudesse ser seu amigo. À noite antes de adormecer, Amir notara que o seu bolso aparentava estar mais cheio. A busca da razão não tardou a denunciar que inexplicavelmente no lugar da pérola que oferecera ao amigo antes de partir, duas lhe ocupavam agora o lugar. Admirado mas sobretudo resignado ante o que não entendia, deixou-se adormecer, vencido pelo cansaço.

A alguns dias de viagem, Amir encontrou um homem idoso que fabricava calçado. Amir sentou-se junto dele e após observar atentamente como o homem trabalhava, começou a ajudá-lo à medida que ia aprendendo a arte de sapateiro.
Passado algum tempo, Amir notara que o idoso sapateiro ia-se comprometendo com mais encomendas, com o objectivo de forçar Amir a ficar com ele e assim, aumentar o seu rendimento e o lucro próprios.
Desejoso de mudar de situação, Amir decidiu partir de novo e estando mesmo assim, grato pela companhia e por tudo o que aprendera com aquele homem, Amir decidiu oferecer-lhe também, uma das suas pérolas.

Nessa noite, mais uma vez Amir ficou supreendido pelo facto de encontrar duas pérolas no lugar da pérola que oferecera.

Amir foi viajando e conhecendo vários amigos e em todos eles encontrara companhia, conhecimento mas também algum motivo de descontentamento, mas a quem apesar de tudo, dera algumas das suas pérolas para que retivessem dele, uma recordação que o tempo não apagasse, as quais por sua vez, inexplicavelmente foram redobradas na sua substituição no velho colar que herdara de seus pais.
Cansado de viajar e da busca do amigo que desejava, Amir resolveu voltar à aldeia que o vira nascer e que de tão familiar, lhe acalentava a alma com o matar da saudade que tanto o contrariara enquanto viajante.
Quando chegou, já ao anoitecer, sentou-se no seu lugar preferido junto à velha palmeira que ainda o aguardara, enquanto colocava diante de si o precioso colar de pérolas, agora aumentado no seu número, tentando perceber a causa.
Contudo, já vergado pelo cansaço da jornada, Amir deixou-se adormecer, remetendo ao abandono o cuidado habitual de guardar no bolso dos calções o seu mais precioso bem.
Já de manhã, Amir acordou suavemente com uma carícia do Sol matinal que a velha palmeira deixara passar entre a folhagem, que atenta guardava o sono do jovem adormecido.
Levantando-se, Amir reparou que deixara as pérolas ao descuido do relento e que agora reluziam intensas sob os raios de Sol que nelas faziam o alvo preferido entre tudo em redor.

Quando já habituados os seus olhos àquele brilho intenso, Amir reparou que todas e cada uma delas reflectiam as imagens de todos os amigos e familiares que conhecera e que juntas formavam a imagem que reconhecia ser a sua neles reflectida.
Surpreendido, Amir esfrega os olhos, cuidando ainda estar a sonhar, à medida que se apercebe que aquelas imagens eram reais e estavam vivas como ele, respiravam como ele e falavam a sua língua.

Amir ainda não refeito da surpresa, levou precipitado a mão ao bolso, que esperando vazio, um pequeno volume revelava na busca, de novo o seu colar de pérolas, que segurou nas mãos entre os que agora o acompanhavam, envoltos no aroma de rosas que Amir já conhecera antes.

segunda-feira, abril 14, 2008

Se o meu silêncio se ouvisse


Se o meu silêncio se ouvisse,
ouviam-se vozes de revolta.
Entravam nos templos os excluídos, para aceder aos altares dos santos.
Tiravam os véus os crentes, numa oração sincera de cara descoberta diante dos deuses;

Se o meu silêncio se ouvisse,
ouvia-se o choro mudo de crianças que não brincam.
Agarravam os anciãos, nas espoletas da mentira com que os falsos profetas alimentam o mundo, num deflagrar de expiação;

Se o meu silêncio se ouvisse,
ouviam-se no vento, gritos de saudade dos que foram e não partiram e dos que partem mas não se vão.
E a vida deixava a forma das marés que vai e volta em ondas de saudade;

Se o meu silêncio se ouvisse,
os meus braços iam mais além e as minhas mãos chegavam dentro de mim.
E o meu rosto mostrava nos olhos o olhar vazio do céu, enquanto caiem estrelas como rosas amarelas;

Se o meu silêncio se ouvisse,
a minha alma chegava mais além.
E eu, não seria mais que ninguém,
se o meu silêncio se ouvisse.