terça-feira, julho 29, 2008

Em nome de Deus ...

“Pai nosso que estás no céu, …”. A cabeça ligeiramente tombada sobre as mãos de palmas unidas a traçar de prumo o limite da face. Era assim que começava todos os dias, traçando com devoção as linhas com que pretendia escrever a própria vida, como extensões improvisadas do livro sagrado que empunhava junto ao peito, sempre que rezava.

Saiu apressadamente pelo atraso da hora desejada, despedindo-se da casa benzendo-se diante do crucifixo que lhe guardava a porta, enquanto se lançava no caminho da igreja onde outras como ela já se viam mais adiantadas. Com o passo apressado de as igualar na chegada e na devoção, foi submergindo de cor os dedos na carteira de onde sacou as moedas que já guardara nos dias anteriores para distribuir pelos pedintes, quantos o átrio da entrada acolhesse e as moedas chegassem, com a excepção de uma, que de maior valor guardava para colocar num gesto conhecido na caixa dos pobres que fazia uma sentinela de silêncio na parede junto da porta do templo.

O momento da comunhão fizera-o sentido e em silêncio, enquanto a hóstia lhe sagrava a boca e o espírito que sentia mais leve e confortado desde a última ida ao confessionário e do quanto havia rezado desde então, não só por si, mas por todos quantos ainda gostava e lhe eram de boa recordação, de preferência tão crentes como ela e dos mesmos bons costumes.

Finda a celebração, conversas e diálogos tomaram o lugar do sermão da missa no tecido humano que cobria o átrio, quais células que ora se multiplicavam, ora diminuíam ao sabor das horas que eram e do tempo que ia faltando e do qual apenas iam restando as mais devotas que sobre os que iam, lançavam o parecer, fosse da pressa ou fosse do silêncio ou da discrição com que as ignoraram na chegada e agora na partida.
Tomou como as outras, a lista contra o aborto e o uso de preservativos que haveria de fazer assinar por filhos, sobrinhos e quantos se pudesse fazer ouvir, fora pela salvação das almas dos mesmos fora pela devoção à causa e á fé que queria clara e pública, que por ela não apresentaria menos assinaturas que as demais que com ela partilhavam a crença da salvação.

Chegada a casa, o cansaço cobrava-lhe as forças e a família a preocupação, embora já tivesse mais tempo para o descanso, uma vez que deixara de visitar a amiga ao hospital, desde que ela lhe dissera para que não interferisse na vida pessoal dela. Assim ocuparia a tarde com outras preocupações que lhe eram mais caras e a que se dedicaria na melhor das vontades.

Pegou no telefone e discou o número de fiscada. O diálogo era triste das avessas conjugais que ela entendia e julgava do alto da experiência que a vida lhe havia concedido na sapiência. “Olha, deixa-me que te diga, tu deves é olhar pela tua vida e não te preocupes com ele, …”. As recomendações saiam-lhe fáceis e quase evidentes, fosse pelo desejo ou pela lonjura pessoal das consequências delas. As investidas aguçavam-lhe o gosto e depressa aquele aparelho mágico lhe permitiria chegar a quem mais desejava.

Assim, em pouco tempo sugestões e conselhos se apressavam a condenar, extirpar e a julgar, todos quantos neles ela não visse outra que não fosse a sua vontade ou ideia, quais malditos que da condição de bons, depressa eram queimados na fogueira da Inquisição que ela concebera unilateral e piamente.
Inconscientes eram todos os que não temiam ao seu Deus, de maus princípios todos os que não a ouviam ou permitiam a intromissão e amaldiçoados todos os que não lhe davam a alma a guardar. Todo o tempo que reconhecia, dedicava-o ao bem, para que todos eles, assim como prostitutas, divorciados, comunistas, os que não lhe falavam ou dela sentiam agravo e outros que ela não conhecia bem mas que sabia serem inimigos da sua fé, viessem um dia a ser como ela e lhe reconhecessem a piedade com que se santificava diariamente em terços e novenas que lhe atestavam a crença.

À noite, a última oração rematava-lhe o dia sob os olhares cúmplices das fotos dos que lhe enfeitavam a presumida magnanimidade do bem querer e que por isso tinham o privilégio de marcar páginas no livro sagrado, na vã esperança de se juntarem á devoção.

Agora sim, sentia-se mais leve e pronta a adormecer, na tranquilidade de ter feito justiça e de que santos e apóstolos lhe louvariam os actos antes de um Deus que era mais seu que dos outros a quem não via tão piedosos. Podia assim, sonhar apor-se de livre vontade um par de asas que ela sentia merecidas mas que o peso da consciência não lhe permitiria voar aos olhos dos outros que não eram como ela na beatitude amaldiçoada.

quarta-feira, julho 23, 2008

Odores em grãos de areia

Ainda a noite não se despediu do dia e já o ar quente começa a tomar o lugar da aragem húmida que me fez cobrir com a manta multicolor com que me abrigo.
Dentro da tenda o dia toma tons pardos enquanto o ar ainda é respirável, tingido pelo odor seco do pão quente acabado de cozer na chapa que vou tragando em pedaços dobrados pelos dedos calejados empoeirados pelo tempo e pelo pó que tudo cobre numa presença incontornável.
As últimas cabras a serem ordenhadas espalham alguns balidos numa saudação ao novo dia, a que me associo ao ritmo de pequenos goles com que sorvo o leite matinal ainda morno da ordenha.

Chega a hora de levar o rebanho a pastar, numa rotina diária já conhecida, num passeio pelos caminhos adivinhados num terreno de areia polvilhada por pequenas pedras de arenito da mesma cor castanho-claro, quais pepitas de um valor que a abundância e o incómodo de caminhar sobre elas faz desdenhar.
Os escassos arbustos emitem um ruído semelhante ao crepitar do óleo quente, quando sujeitos à persistência do mastigar das cabras, que indiferentes às arestas afiadas das folhas quase secas, as devoram resignadas á imposição do apetite.

Uma caravana de camelos surge no horizonte quase invisível pela cumplicidade das cores com o tom doirado das dunas, denunciada pela fila de sombras ondulantes, vacilando ao ritmo paciente dos passos que tomam cadência em baques que ganham um crescente volume surdo à medida que se aproximam.
“Salam aleikoum” saúdam os homens num gesto de cortesia, cadenciado pela mão direita que deslocam entre o peito, a boca e a testa enquanto a mão esquerda segura a montada pelas rédeas de um mesmo couro com que foram feitas as sandálias que lhes calçam os pés. Estão cobertos de panos de um azul forte, contrastando com a alvura branca do pano que lhes cobre a cabeça, deixando uma pequena abertura para os olhos negros cor de azeviche, por onde se anunciam os rostos crestados por um sol que lhes impôs na pele o mesmo tom castanho das tâmaras, que lhes servem de alimento.
O calor emanado pelos bafos da cáfila de camelos mistura-se com o ar quente e seco que tudo envolve e nos entra no peito como se nos aconchegasse interiormente, qual mão invisível, aquecida nas mesmas brasas onde uma pequena chaleira emite o som doce do murmurejar da água onde deito um pequeno ramo seco de chá de menta, a servir em gestos simples de um respeito mudo, sobre o açúcar que o espera impaciente em pequenos copos de vidro canelado onde a areia e os anos deixaram marcas baças no polir das arestas.
A conversa é calma e em voz amena, quase cerimonial, num idioma de frases de tonalidade quase tão seca como o ar que entra pelas gargantas, que o chá quente ilude em sensações de frescura pelo sabor mentolado da infusão. Esta é bebida a pequenos goles delicados em gestos repetidos com o auxílio das mãos que a conduzem à boca pelos dedos indicadores e polegares já habituados ao vidro quente que as palmas das mãos procuram proteger dos grãos de areia embalados em suspiros furtivos da aragem.
As discussões e os assuntos são tema de numa precursão melodiosa de um gargarejar ritmado, apenas entrecortado pelo borbulhar fino da chicha onde o tabaco misturado de ervas, arde sob as ordens de uma pequena brasa retirada à lareira com a ajuda de dois pequenos ramos, desempenhando de improviso o papel de tenaz nas mãos experientes de um berbere de rosto afilado e expressão severa.

Antes que a noite desça de novo, inclino-me sobre a esteira no alpendre da tenda e demoro o olhar sobre a paisagem que vai tomando tons de âmbar enquanto o céu muda para um tom anilado que a lua quando nascer vai contrariar em reflexos de esmeralda.

Fecho os olhos e aspiro confortado a novidade da frescura da noite enquanto penso que não era capaz de viver noutro lugar, sem que deste sentisse uma castigadora saudade.

quinta-feira, julho 17, 2008

Os três livros da vida


Hyram era um jovem talentoso cuja sina o fizera atravessar a vida, quer por encruzilhadas, quer por caminhos mais ou menos agrestes. Quisera o destino que encontrasse abrigo e aconchego num templo local após ter perdido quase toda a família devido a epidemia que assolara a região.
Frequentemente a saudade dos seus levava-o a sentar-se olhando o horizonte, fazendo do céu e da terra companheiros de uma conversa muda que só ele ouvia através do silêncio que era a língua base de tantos diálogos que tinha consigo próprio.

Foi num desses momentos que um dos sacerdotes se aproximou de Hyram, perguntando-lhe em que pensava.
- Em que pensas meu filho ? Questionou o sacerdote, ajeitando a túnica branca que fazia coro com os cabelos da mesma cor que lhe decoravam a cabeça, como uma aura que o sorriso sempre presente ajudava na presença e no aconchego que as mãos traduziam em gestos brandos enquanto pousavam nos ombros do jovem.

- Em nada em especial. Lembro-me da minha terra e da minha família e amigos. Lembro-me do que estou aqui a aprender e penso no que poderei vir a fazer na vida. Penso na solidão fria que sinto à noite e no calor dos dias em que aqui estou com outros como eu. Penso no que não tenho e quero ter e penso no que tenho e não procurei.

- Sabes meu filho, a vida é feita de três livros, todos eles com capas iguais. O primeiro tem apenas as imagens do passado que se tornam nas recordações que guardas contigo. O segundo descreve o presente e o modo como vais vivendo cada um dos teus dias e o terceiro tem informações sobre o que será a tua vida no futuro. Em cada momento deverás saber qual deles queres ler.

- E como vou saber qual devo ler ? Questionou Hyram ao sacerdote ancião, com o olhar admirado que os olhos negros dirigiam numa atenção que denunciava a busca do conhecimento daquele jovem sedento do saber, qual andorinha em busca de água e terra com que haveria de construir o ninho que formava a vida.

- Sabes, quando és jovem, as recordações ainda são poucas e quase sempre são ensinamentos importantes a recordar e deve ser esse o livro a ler. A meio da vida deves viver intensamente sobretudo o dia a dia, que é sempre curto, recordando apenas as boas recordações entre as tantas que te fazem o conhecimento e não descurando todo o futuro que ainda te aguarda. Quando já fores idoso, vive sobretudo a vida que te resta no futuro que entretanto se tornou mais pequeno, procurando saborear a vida como o mais suculento e maduro dos frutos sagrados.

- Entendi. Mas como vou identificar qual o livro que devo escolher ao longo da vida ?

- É fácil meu filho, dos três livros, deves escolher o que tiver menos folhas para ler em cada fase da tua vida.

sexta-feira, julho 11, 2008

A forma da "saudade"

Achmed era conhecido em toda a região pela arte de esculpir na pedra, tendo ganho fama pela habilidade e perícia nessa arte, que aprendera em tempos quando ainda pequeno vivia com os pais. Contudo, nada do que conhecera o ajudava agora para satisfazer o pedido do Sheikh que lhe encomendara uma escultura que lhe representasse a saudade. Há dias que procurava em vão a inspiração nos pequenos modelos feitos de areia húmida que depois de secos conservavam precariamente a forma original.

Desesperado sentou-se na crista da duna olhando o sol enquanto este de punha. O deserto era imenso e era ali que gostava de recolher-se quando a vida não lhe era de feição. Sentava-se normalmente a espreguiçar o olhar pelo horizonte, como se esperasse que algo de novo surgisse do nada.
Tinha nas suas mãos um dos vários modelos de areia que preparara, mas sem que o agrado lhe desse a aprovação que gostaria de se consentir a si mesmo, se achasse a obra digna da sua arte. Estava triste. Como desejava que os seus pais ali estivessem. Eles que tanto lhe tinham ensinado na arte e na vida, não lhe tinham afinal, ensinado tudo, e ali estava ele sem conseguir traduzir o que também o seu coração sentia.

Dos olhos, pequenas gotas de água rolavam pelas faces trigueiras, caindo sobre a pequena escultura de areia que as mãos seguravam e que a pouco e pouco se ia desfazendo ao ritmo de um choro calado.
Achmed olhou para as mãos que antes seguravam uma forma que esculpira à sua semelhança e que agora não era mais que um pequeno monte disforme de areia que procurava evadir-se por entre os dedos para voltar à sua forma primordial.
Tinha afinal, diante de si e nas suas mãos, a mais fiel representação da saudade que também sentira e que a pouco e pouco lhe ia desfazendo a alma e a memória.