sexta-feira, novembro 28, 2008

A assinatura

O silêncio tinha uma tonalidade cor de pérola e ambas as mãos sobre a mesa pareciam guardiãs resolutas e mudas de uma vontade que não as fazia sequer tremer.
Tão natural como respirar, uma delas tomou a caneta e traçou um bailado repetido e ensaiado mil vezes, deixando a marca conhecida e reconhecida dos passos que os dedos aprenderam a adestrar.

Ambos estavam presentes de um e do outro lado da mesa, quietos e presentes e a emoção foi a única que não fora chamada a testemunhar o momento, diz-se porque tenha ficado há muito pelo caminho que os conduzira ali naquela hora.

O frio entrou pela porta de casa que se abriu, para se juntar ao da sala onde as mãos iniciadas tomaram as folhas brancas e traçadas a coberto dos olhares para as levarem onde o mundo lhes fizesse de facto a decisão tomada.
De saída, a chuva a cair dava voz aos passos únicos de passeio enquanto as mãos nas algibeiras procuravam o calor solitário que o peito já remetera para o passado como se o mundo já tivesse sido todo feito de neve e gelo que ora o degelo testemunhava.
Chegasse a noite para se esperar apenas pela manhã.

sexta-feira, novembro 07, 2008

O boneco de neve

Aceline era uma menina feliz que corria feliz entre o vale e o bosque que lhe ladeavam a casa. Aquele era o seu mundo, cuja fronteira era delineada pelos sonhos que lhe pintavam o sorriso e o abraço de tudo o que o olhar alcançava e que os braços pequeninos queriam agarrar.
O amor, esse, ela conhecera-o sempre entre o pai, a mãe e todos os que encontrava ao seu alcance, fossem animais, flores ou gentes de passagem ou visita, que no tempo a memória atraiçoava por vezes.

Ciclicamente o inverno aparecia e com ele, tudo e todos pareciam esconder-se como se alguém tivesse apagado tudo à passagem e um quadro multicolor ficasse reduzido a um manto branco e a contornos pardos que nem as sombras conseguiam colorir. Era a altura em que Aceline perguntava receosa pelas flores, pelas folhas das árvores e pelos pássaros que já não via nem ouvia e que receava se tivessem aborrecido com ela e partido para sempre.

Só e sem mais ninguém com quem brincar, Aceline decidiu juntar a neve em frente à casa e com ela, foi dando forma a um boneco de neve em que ela própria foi servindo de modelo nas proporções com que ia dando forma ao que antes era um monte disforme de uma massa branca e fria que lhe enregelava as mãozitas pequenas, apesar das luvas de pele de ovelha que trazia calçadas.
Pouco a pouco o boneco ia ficando mais de acordo com a imagem que concebera, enquanto dois olhos vivos e redondos davam uma expressão de contentamento a uma carita de porcelana que contrastava com os cabelos castanhos claros, que sorrateiros ultrapassavam os limites do gorro, denunciados em pequenos caracóis que o vento embalava ao sabor dos passos incertos mas decididos.
Terminada a obra, Aceline demorou-se a olhar o boneco que fizera e que diante de si, parecia olhá-la também como se ganhasse vida através do olhar que a pequenina lhe devotava, enquanto sacudia das mãos os últimos flocos de neve como quem terminara a obra.

Todos os dias a pequenina Aceline espreitava logo de manhã pela janela, ao acordar, para se certificar que o seu boneco de neve ainda lá estava e este, mantinha-se firme no seu lugar virado para a porta da entrada como que para receber a pequenina, sempre que o tempo permitia e a mãe a deixava sair para brincar na neve.
Aceline cedo se apercebeu que aquele não era apenas um boneco de neve. Era muito mais do que isso, era o seu boneco de neve. Era a sua obra cuja beleza ela via grande como tudo o que poderia alguma vez gostar e gostava tanto dele quanto podia gostar de algo ou alguém, numa paixão em jeito de gente pequenina mas do tamanho de tudo o que a vista alcança.

A pequenina queria levar o boneco consigo para casa, onde ele pudesse estar sempre com ela e longe do frio e da solidão da noite. Contudo sabia que estar com ele em casa seria trocar o seu contentamento pelo desgosto de ver o seu boneco de neve desaparecer diante de si. Como poderia o calor da casa e a sua companhia fazer desaparecer o que ela mais gostava ? Que sentido poderia ter isso ?
Assim, todos os dias Aceline reafirmava por aquele boneco o seu melhor sentimento a que dava vida em diálogos imaginados e de brincadeiras onde o seu boneco ganhava vida e movimento que só os crescidos não entendiam nem ousavam ver.

Contudo, o inverno foi-se despedindo e com o anunciar da primavera o manto branco foi diminuindo e com ele também o boneco de neve foi acusando na forma o passar do tempo, como se o tempo nele acusasse a idade no tempo e deste modo, depressa boneco e manto de neve se transformaram em pequenos riachos de água cristalina serpenteando-se entre pequenos tufos de plantas e flores que começavam a desabrochar.
Aceline viu com desgosto o seu boneco de neve e companheiro desaparecer sem entender porquê. Porque teria ele de desaparecer, ele a quem queria tanto ? E assim, todos os dias ela olhava desgostosa pela janela para o lugar onde antes o seu boneco estava e onde agora se erguia majestosa uma haste de roseira brava.

Não seria capaz de esquecer o seu amado boneco de neve e a saudade fazia-a lembrar-se de todos os detalhes que antes as suas mãozitas haviam criado e percorrido, fazendo-o conhecido de memória e que o tempo não apagava.Cada vez que nuvens brancas se anunciavam no céu azul, Aceline reconhecia nelas a forma e o sorriso do seu boneco de neve, que agora a saudade fazia imaginar numa presença constante que nem o silêncio nem a ausência sabem apagar.

sábado, novembro 01, 2008

Em silêncio póstumo

Viu Hades feita à força a vontade que foi sua,
No aplauso que Perséfone fez por igual ouvir,
Foi na calada da noite, que ao abrigo da lua,
Tanatos e Hypnos de manso se fizeram sentir.
Estes que antes igual a coberto de nefasto dia,
Haviam já cobrado quem por quem já se sofria.

Mas se Hecate viu saber feito o seu intento,
E a morte tomados aqueles como Tífon fez,
Nem Ares nem Poseídon chegarão a ter contento
No rugir do rasgar dos céus, quando for minha a vez.
Ficou tão só o silêncio dos que adormeceram já,
Que é meu também igual aos que já não estão cá.

E se a alma não souber dizer palavra alguma,
Que não seja por não saber sentir ou falar.
Seja antes por não haver das palavras nenhuma,
Que saiba dizer o que o peito mais quer calar.
São hoje lentos os passos entre campas rasas,
Quantos pesam no corpo, a que a consciência pôs asas

Tomem-se nas flores, as que sejam mais sagradas,
Em que igual se torna por ali estar quem as tem,
A Pai sejam cravos e a Mãe as rosas sejam dadas,
E ambos à Filha entreguem aqui destas também.
Sejam por fim a família que além onde juntos estão,
Que aqui vos guarda quem na vida o quis em vão.