quarta-feira, junho 25, 2008

O livro de Maryam


Maryam era uma mulher ainda jovem, a quem a vida remetera para uma existência calma e serena a quem os demais que com ela partilhavam a condição de berbere, atribuíam um estranho dom de acalmar homens e animais. Os gestos simples e as palavras de conforto condimentadas por um bom senso genuíno, levavam amiúde as gentes a pedirem-lhe conselho e a buscar conforto nos momentos difíceis.

Habitualmente as noites eram para Maryam, calmas e o momento diário de repouso, mas aquela em particular, fora agitada por um sonho que a tocara particularmente. Resolveu por isso, falar com a senhora mais idosa da aldeia a quem queria e tratava como mãe e nela reconhecia a sabedoria dos anos já vividos.

- Olá minha filha. Que tens ? Que te trouxe agitado o olhar ? Perguntou a idosa adivinhando a inquietude to traçado rápido dos passos que a traziam.
- Assim é de facto, minha mãe. Esta noite tive um sonho estranho. Apesar de não me lembrar de já ter sonhado aquilo antes, é como se não me fosse totalmente desconhecido. Sonhei que estava num templo antigo, junto de um homem jovem como eu. Ambos éramos pobres e falávamos às gentes como se lhes estivéssemos a ensinar algo. Estávamos vestidos com túnicas cinzentas e calçados com sandálias de pele de cabra. Será que quer dizer algo ?
- Minha filha, a vida ensina-nos que ninguém é suficientemente rico para comprar toda a sabedoria do mundo, nem ninguém é tão pobre que nada tenha para ensinar. Nesta vida, todos somos alunos e mestres e ninguém aprende sozinho, mesmo que não veja o professor que está ao lado.

Satisfeita com a resposta, Maryam voltou às diárias que diariamente dela dependiam no arranjo da casa e no amanho da pequena horta que ladeava uma pequena casa de adobe pintado de branco, encimada por dois troncos que sobressaíam na fachada, suportando um telhado de folhas de palmeira entrelaçadas.
Nessa noite, Maryam voltaria a sonhar e mais uma vez procurou na idosa, uma interpretação, fosse para o que sonhara, fosse para a inquietação que passara a sentir por isso.

- Mãe, voltei a sonhar sem que entenda o porquê. Desta vez fui tomada da casa de meus pais por um príncipe que me carregou no seu cavalo e me levou para o palácio e me fez sua mulher. Eu era pobre e ele vestia de manto negro a condizer com a barba hirsuta que lhe dava um ar austero, guerreiro e temerário no brandir da espada que trazia à cintura. Contudo era gentil comigo e a protecção dos seus braços fazia-me sentir desejada e amada.
- Minha filha, a vida ensina-nos que ninguém é suficientemente forte para não precisar dos outros, nem ninguém é demasiado fraco para não ser a companhia de alguém. A vida é uma luta constante em que todos os dias a riqueza dos homens se resume à sua capacidade de viver com os outros e de amar alguém.

À semelhança do dia anterior, Maryam ficou a meditar naquelas palavras que a terem algum sentido, assim o futuro decerto lho haveria de mostrar.
No dia seguinte, apercebeu-se que a noite se passara como as anteriores e por isso o caminho junto da idosa lhe ocupou o lugar a preocupação do início da jornada.

- Mãe, mais uma vez sonhei com o mesmo homem dos sonhos anteriores. Desta vez, eu era menina e ele um monge num mosteiro distante. Todos os dias eu e outras crianças como eu, íamos com um cesto de vime, buscar à horta que ele cuidava, o alimento que nos aliviava da fome em casa. Via-o sorrir com a ternura da caridade e de barba grisalha à minha passagem, como se aqueles alimentos não fossem dados ou recebidos mas partilhados numa refeição de uma grande família onde todos se podem servir e matar a fome.
- Minha filha, a vida ensina-nos que ninguém é tão voraz que consiga comer todo o pão do mundo, nem ninguém está tão saciado que não possa comer o mais pequeno pedaço de pão. Uma migalha mesmo que pequena, quando é dividida e partilhada com alguém consegue sempre transformar-se em duas.

Maryam ouvira atentamente, esperando pela noite seguinte para ver que de novo a noite lhe reservava.
No dia seguinte, quando à tenda que servia de casa à idosa, Maryam deparou-se com um vazio, como se aquela tivesse partido e seguido o destino já conhecido dos nómadas.

Sobre uma pequena esteira estendida no chão, estava a pequena bilha de barro que Maryam costumava levar com água fresca, pousada sobre um velho livro, ao lado do qual restavam igualmente uma pequena caixa com incenso e um pequeno prato com tâmaras.
Embora compreendesse a partida da idosa, sentia-se mais só, a que juntou a resignação com que tomou nas mãos as pequenas lembranças que encontrou naquela esteira já antiga e meia desfeita pelo tempo.
Maryam não voltara a sonhar e os dias retomaram naturalmente a cadência já conhecida dos anos anteriores, sempre iguais, no espaço e no tempo, quais templos num sacerdócio constante à vida que se desenrola na calmaria daquela aridez desértica.
Subitamente todo aquele silêncio acabou por ser interrompido por leves pancadas na porta, com cadência e toque que denunciavam, ou cuidado no trato ou cansaço de alguém em fim de viagem.
Maryam, abriu a porta.

Encontrou sentado na soleira, um homem visivelmente desgastado pelo tempo e por uma longa caminhada que as vestes cinzentas e as sandálias de pele de cabra já gastas denunciavam. Os olhos eram negros e penetrantes e a barba grisalha e rebelde juntavam-se numa feição grave e decidida, que os lábios contrariavam num sorriso meigo no beijo das mãos na saudação tradicional que à boca lhe chegavam do coração. Trazia consigo parcos haveres que guardava num velho cesto de vime, enrolados num velho pano escuro que o abraçava, num mesmo tom de pó que tudo cobria naquele homem.

Maryam, sem hesitar, serviu-o da água com a pequena bilha, colocando diante também, o prato com as tâmaras.
Já saciado, o homem sorriu recomposto, enquanto Maryam envergonhadamente lhe estendeu o velho livro que a idosa lhe deixara, perguntando-lhe se lhe podia dizer que livro era aquele e o que dizia, já que ela não sabia ler, na esperança de que ele lho pudesse descobrir.
O homem tomou o livro das mãos de Maryam e quase sem olhar, tomando-as também nas suas, respondeu-lhe olhando-a fixamente nos olhos:

- É o livro da tua vida. Na capa tem o teu nome e no interior, a metade final das folhas está em branco para que nelas escrevas o que aprendeste com a metade inicial.
- Mas senhor, eu não aprendi a ler nem a escrever.
- Querida Maryam, nem todos os livros e memórias se escrevem com letras, nem o coração dos homens se encontra escrito com elas.

segunda-feira, junho 16, 2008

Verdes anos

Um vulto negro quase imóvel sentou-se, aninhado como quase sempre, junto da lareira que lhe devolvia o calor que a vida lhe negara.
Perto, uma criança pequena e de olhos expressivos, onde o mundo cabe numa mão cheia de olhar, brincava ao sabor da descoberta que as pequenas mãozitas dedilhavam em tudo o que alcançavam.
De repente os olhares encontraram-se e a pequenita, vestida de um sorriso com que a idosa se aquecia de ver, chegou-se a ela com os braços estendidos, agarrando com as dela, as mãos que a recebiam como a dádiva mais desejada dos deuses.
As mãos, essas, continuavam na descoberta, dividindo-se entre as que a agarravam e aquele rosto enrugado a que a lareira, por momentos, emprestava um reflexo doirado em tons que o sol procurava imitar durante o dia na jornada na eira, acompanhado no matiz pelas espigas de milho que o vento procurava embalar ao de leve. De dedo estendido, guardado pelo olhar admirado, procurava acompanhar os pequenos ribeiros inscritos nas mãos e nas faces, como uma mensagem escrita de símbolos que todos sabiam mais ler que julgar.

Quebrando o silêncio até então apenas interrompido pelo crepitar sorrateiro do madeiro na lareira, a idosa sorri, já esquecida da noite que chegara como a idade que lhe traçara o corpo.
- Vem, olha para as minhas mãos e vê nelas os versos que a vida no tempo escreveu.
- Olha para o meu rosto. Vê como o sol e a chuva escreveram nele o sorriso que agora vês.
- Olha para aquela maçaroca de milho que além está. Também ela já foi verde enquanto o tempo a fustigava e agora se oferece já seca com as folhas como a minha pele para a farinha que te alimenta.
- Vem, olha para mim e que vês tu ?

A pequenita atenta mais nas expressões que sentia que nas palavras que nem a custo achava entender, estendeu o braço numa carícia demorada que continuou num inclinar da cabecita coroada de pequenos caracóis claros para depositar um beijo nas mãos que a seguravam, num gesto que selou com um sorriso partilhado entre as duas.

sexta-feira, junho 13, 2008

Ilda: 13 de Junho de 1950 ... 16 de Outubro de 1955


Lá longe, bem alto, onde os anjos dormem;
Tão longe e tão alto, onde mão alguma se achega;
Descansam os que aos olhos do mundo se somem;
Libertos de memórias a que a vida se apega;
São agora mais que deuses, santos ou qualquer homem;
Foram antes tudo aquilo que a vida quer e a morte leva;
Foi aqui que cada um colheu o seu próprio fado;
Que ora uma guitarra geme na busca do desejado afago.


Descansa em Paz Profunda lá no Oriente eterno minha querida irmã, na companhia dos que mais amaste e te amaram e que agora estão contigo.

quarta-feira, junho 04, 2008

Não sou desse país

Abriu a janela da marquise e com esforço conseguiu prender a haste branca ao suporte das roldanas que a custo, procuravam esticar, elas a corda onde estendia a roupa e ela a resistência com que ia superando os dias que alimentava com o salário que venerava no emprego que a precaridade da vida lhe reservava.

Esticou-se o mais que poude para que a pequena bandeira pudesse destacar-se da roupa e ficasse bem visível naqual depositara o orgulho seu, que também era nacional. Gostava que a sua bandeira fosse grande, tão grande como todos os braços abertos, embora acabasse por comprar aquela, que embora mais pequena, fora acarinhada desde a loja dos chineses que a vendera apenas a um euro. Não era perfeita e até lhe disseram que parecia não estar bem feita, mas era a sua e que coisa, afinal era um bandeira portuguesa como as outras.
Era uma bandeira numa janela de uma marquise de uma casa portuguesa como tantos milhões de casas, famílias e bandeiras.

E eu, tenho uma casa, uma marquise com uma janela, mas não tem a bandeira desse país.
Afinal, nem desse nem de qualquer outro, onde o acaso me fizesse nascer para arremesso de quaisquer outros que nascessem mais além.
Afinal, eu também não quero ser desse país.
Quero ser ser de um país onde os homens sejm livres e iguais e se juntem à sombra das acácias num convívio fraterno. Quero ser de um país onde as cruzes simbolizem apenas os homens que cultivam rosas numa paz profunda.

Não quero um país que quer que a educação se pague por quem possa pagar;
Não quero um país que quer que a saúde se pague por quem possa pagar;
Não quero um país que converte a alimentar Pintos da Costa e Valentins Loureiros;
Não quero um país onde as ambulâncias parem por falta de médicos;
Não quero um país onde as pessoas morram por falta de assistência médica;
Não quero um país que abandona os seus idosos depois de se ter alimentado deles;
Não quero um país que exalta políticos envolvidos em escândalos;
Não quero um país que exalta ministros que proclamam leis que desprezam;
Não quero um país que exalta presidentes-cabides com magistraturas de influência;
Não quero um país complacente com pedófilos;
Não quero um país que cobra IVA a quem vende e não cobra e dá a quem não paga;
Não quero um país que colabora com o cartel do petróleo;
Não quero um país que fecha escolas e centro de saúde com base em estatísticas;
Não quero um país que não tem dinheiro para hospitais e escolas e compra submarinos;
Não quero um país com doentes a tratar em Cuba e Espanha por falta de recursos;
Não quero um país que acentua a diferença entre ricos e pobres;
Não quero um país complacente com a máfia de falsas igrejas;
Não quero um país plantado de estádios de futebol inúteis mas com falta de hospitais e escolas;
Não quero um país com canais de televisão mas sem cultura;
Não quero um país de fado, futebol e Fátima mas sem educação;
Não quero um país sem futuro e com um presente que vive apenas do passado;
Não quero um país de desigualdades instituídas;
Não quero um país com bandeiras tingidas por lágrimas de gente que sofre inocente enquanto, sem razão, alimenta os que conhecem as bandeiras mas não os homens que as carregam.
...
Não, não sou desse país. A minha pátria é o Mundo.