quarta-feira, janeiro 23, 2008

Insanidade profana


Pé ante pé, sigo no meio da estrada num passo apressado, ao desafio do trânsito que me passa ao lado, num vai e vem que me roça as roupagens e a alma. O dia veste-se de azul manchado de branco e cinzento, qual descuido de pintor a quem o tempo não se emprestou para acabar a obra celeste.

O pavimento troça do sol, com um irreverente tom escuro, ao longo do caminho que se estreita na razão inversa da proximidade, terminando ao longe num traço fino de cabelo, entre a cabeleira farta do horizonte que teima no olhar complacente dos que passam adiante.

Refreio de repente, quase esbarrando numa criança que se atravessa no caminho, montada numa bicicleta a que falta uma roda e em que o guiador resultou dum bordão arrebatado a um profeta que desistira de caminhar ali perto, onde os homens e mulheres se tornam iguais.

Retomo o caminho, agora ziguezaguiando entre peregrinos que seguem em sentido contrário, em direcção a uma catedral onde não me deixo entrar, enquanto santos abandonam os altares e agora se sentam como pecadores no primeiro degrau do altar-mor, orando na humildade dos sentidos.

Começou a chover uma chuva miudinha, numa bênção generalizada, levada a cabo pelas mãos de uma tempestade paramentada de relâmpagos, a que se juntaram freiras e cardeais num concílio escrito no chão, por onde caminham infiéis devotos de braços abertos numa histeria colectiva porque o sol nasceu da noite.

Baixo-me num último segundo, escapando por tempos imemoriais dos abutres que fazem vôo raso por sobre as cabeças rapadas de sentimentos, alheias aos cânticos que se fazem soar numa ruela que se apresenta ortogonal à direcção por onde já ninguém se vê caminhar a horas vagas.

Quase chegado ao fim do espaço que a vista alcança, uma criança sentou-se na beira da calçada, de braço estendido, aproveitando o momento de oração profana para mitigar a fome colectiva com nacos de hóstias consagradas aos deuses primordiais. Vejo-lhe os olhos pintados de dourado, da cor dos cabelos e da talha do oratório onde pregou a cruz que lançou aos olhares das multidões que a ignoram.

No banco de um jardim do lado onde o sol se põe, jaz uma mulher cansada de abortar os gritos que lhe magoam o corpo, que amordaçou com uma longa tira de pano tingido de uma cor púrpura que a chuva tingiu com os pecados dos que a condenam num coro arrebatado pelo silêncio cúmplice da bênção papal.

A chuva deu agora lugar a vagas de vento e granizo, com as quais rodopio numa dança louca, esquecendo-me de quem sou. Beatas clamam-me pela santidade arremessando crucifixos que as mãos dos crentes recolhem avidamente numa injúria satânica a que me remetem in extremis.

Chegado ao fim da rua, esta denuncia-se numa pista traçada sobre o vinil pintado com a cor da minha sombra, onde me revejo na etiqueta que ostenta o meu olhar sobre um disco que mãos secretas fazem rodar ao sabor dos tempos.

Aproxima-se derradeiro um homem curvado pelo esquecimento, amparado pela mãe que lhe toma o pulso, escrevendo sermões num sorriso emprestado por anjos esvoaçando em redor num bailado de andorinha.
Abraçam-me numa redenção à loucura que bebia a tragos curtos pelo cálice sagrado da inocência.

Por fim, julgara-me homem entre deuses, qual Deus entre os homens de regresso ao passado em que voltara de novo ao princípio do caminho que acabara de percorrer em busca da fé.

4 comentários:

Ana Luar disse...

É a rendição da condição humana, na espera sustentada pela ganância de abutres gulosos que aguardam a meio do caminho… na esperança que o desfalecimento, lhes entregue em bandeja o que mãos secretas escreveram nos avais dos silêncios consentidos da inocência.
Avais onde a vida, os extremos e as distâncias são maiores do que qualquer outra coisa .. como uma linha desenhada por Deus, que o homem é obrigado a palmilhar.

A música é FABULOSA....

Sant'Ana disse...

Os caminhos da memória são tortuosos: levam-nos, sofremos de novo e trazem-nos até ao presente, num regresso que ambicionamos seja sempre mais colorido.

Sha disse...

Tive um professor de psicologia que dizia que quando se sentia a definhar mentalmente, se virava de costas para uma parede e aí se deixava ficar, encostado, até que passasse. Era a única forma de prevenir a insanidade mental que sabia estar prestes a atingir.

Eu achava, na altura, que naquele sotão deviam viver muitos fantasmas. Mas hoje dou por mim a pensar que se calhar ele conseguia ver muito além do óbvio...

O Profeta disse...

Os pesares dividem as marés
A idade do ouro ainda tarda
Os anos passam como gotas varridas
Por um tempo que retrata o nada


Convido-te a saborear um absinto no meu espaço
pela Taça de Fino Ouro


Abraço