domingo, maio 04, 2008

Dia de uma Mãe ... sem Ela


Nasceu no dia de Natal que lhe traçou o nome, não numa mangedoura, nem no conforto da palha, mas numa casa pobre e conheceu o desconforto e a escassez de meios que vitimaram cinco dos seus oito irmãos.

Marcou-a o destino com a pouca visão que aos sete anos lhe impôs o uso de óculos e a crença da época desaconselhou a instrução durante a segunda classe do ensino primário, que assim ficou incompleta, amputando o sonho de vir a ser professora da língua que tanto gostava e a reconhecida inteligência reclamaria para sempre, no desejo e no desgosto.

Gabavam-lhe a voz, que ainda jovem, emprestava ao fado que cantava, com a melancolia daquele que era também o seu, a que o pudor da época remeteu apenas para o canto caseiro, na companhia de um pai que no desgosto acalmado pelo álcool imitava o toque da guitarra com um velho abano enquanto a chamava de "Naninhas".

Viu a mãe sair de manhã para o trabalho, enquanto brincava com uma boneca improvisada por um trapo velho, entregue aos cuidados da irmã mais velha.

Cresceu, no sobressalto que a vida guardava diariamente com a cumplicidade do pai nas tabernas que lhe cobraram o soldo e as carreiras de bombeiro e a de sapateiro, a que substituíra a de soldado da Legião Portuguesa, por refutar fazer parte da polícia política, recusando fazer aos demais o que condenava que lhe fosse feito a ele.

A adolescência, entregou-a no trabalho, às vezes gratuito, no arranjo das peles e na feitura de tapetes de arraiolos, na pretensão de lhe servir de ofício para um futuro que nunca chegou.

Casou no recato do lar numa cerimónia discreta, não conhecendo o caminho do altar por um casamento que já lhe guardava nos maus tratos o quanto a vida pode ser agreste, quando o amor é pouco mais que um sonho para quem não chega a dormir para sonhar.

Sofreu a dor da surpresa de encontrar o pai enforcado na cozinha, após o ter ouvido trautear o fado da Mouraria, cuidando que o som do cair das molas da corda de estender da roupa no quintal, seria apenas uma denúncia de um qualquer acto inocente, próprio da esperada embriaguês.

Suportou de mãos postas em orações no quarto de dormir, o que a má língua constrói e destrói no lar, enquanto palavras e agressões dão vida à mentira e ao ciúme, acirrados nos conselhos e desaconselhos por um casamento que uma má família conjugal atormentava de maldade.

Subsistiu no silêncio e no desespero à tuberculose que levou ao internamento do marido durante nove meses e à entrega temporária da filha de cinco anos à irmã, para que assim a privasse do contágio que lhe poderia ser fatal.

Privou com a dor e o desespero supremos na vida, na fatalidade que no entanto lhe estava guardada ao ver falecer a filha atropelada em acidente de automóvel, quando esta ia acompanhada pela tia, após a ter visitado.

Viu sózinha, falecer-lhe nos braços o cunhado a quem prestou o derradeiro cuidado, ao som do pedido de desculpas pelo mal que outrora lhe causara, num arrependimento igual ao da sogra e mãe daquele, com o incómodo de quem nos devolve cuidado pela maldade enviada, quando os outros já os haviam abandonado.

Aceitara no cuidado maternal, a sobrinha que ficara órfã de pai, quando saindo da companhia da mãe a quem rejeitara aos treze anos, lhe batera à porta, para ser tratada como filha, até voltar a sair, casada, para mais tarde revelar a ingratidão durante as quatro décadas em que ignorou os que lhe quiseram como pais.
Viu-se apartada da justiça na morte da mãe que dedicada amara sempre, quando a honestidade não conheceu na irmã que com aquela vivia, nas justas das partilhas que os demais irmão e irmã lhe veriam nela.

Trocou-lhe a vida os passos, quando o anúncio de um mioma lhe ocultou uma gravidez que já não pode condenar, como o fizera a outras como esta, indesejadas, condenando-a a ter um filho que não queria e que um casamento não desejava.

Sofreu no corpo e na alma a dezena de operações a que a fraca saúde obrigara e lhe tomara a audição de um ouvido e um rim, anunciando-lhe a pouca vida esperada e o tormento da necessidade continuada dos cuidados médicos, que lhe salvariam repetidas vezes a vida, enquanto conhecia a realidade a que resignada se submetia à de uma tuberculose renal, o pûs que lhe invadira as entranhas, um coração que lhe fora perfurado na colocação de um pacemaker, uma trombose que a marcara e tantas outras iguais de dor e e sofrimento, que culminariam numa infecção dolorosa de uma bactéria multi-resistente de que sairia milagrosamente sobrevivente.

Viu-se arrancada à vida e ao lar que amava, quando a situação conjugal lhe atentava contra a vida, a que o filho se vira obrigado a resgatar, na cobrança da equidistância filial até então, dando mote às vozes dos que tudo falam e julgam, mas nada sabem e em tudo erram por ignorância e má-fé.

Conheceu naquela que tomara como filha com o filho, a rejeição última que a condenara como outros iguais àquela, a um sofrimento que a infâmia haveria de cobrar, quais hienas acossando injusta e vilmente a vítima enfraquecida, remetendo-a ao ostracismo que lhe tomaria muitas das forças que já lhe faltavam.

Fez-lhe o destino a má surpresa de vir a despedir-se do marido de quem fora obrigada a apartar-se, agora numa última despedida a três com o filho, enquanto aquele a via na derradeira visita, antes de partir sofrendo desta vida.

Fizeram os homens, que passasse os últimos anos de vida repartida, primeiro entre a casa onde se instalara em repouso, nos cuidados do filho que amava e a quem Ela emprestava o chamar de "anjo da guarda" no trato, e depois no lar que este a insistira acolher, para aí descansar digna e condignamente nos tratos cuidados e onde viria a partir desta vida nos braços daqule que a não abandonara num amor incondicional para a procurar proteger de tudo e de todos, e que Ela juntara ao pai e avô deste, nas duas pessoas que mais a haviam amado desde sempre.

Nasceu no dia de Natal que lhe traçou o nome e à semelhança de Cristo, acabou crucificada pelo sofrimento e pela maldade de muitos a quem a dignidade se mostrou alheia, mas que a Ela lhe fora sempre conhecida.
Pobre Mulher que sem razão, sofreu à mãos de uma vida que lhe teimou em dizer "não".
Chamava-se "Natalina", era a minha Mãe e faleceu nos meus braços, num último beijo solitário, ao som das lágrimas que ainda choro.
Foi com Ela que a minha vida começou enquanto a sua só terminará com o final da minha.

Querida mãezinha, repousa lá no céu eternamente, enquanto maldigo os que te fizeram sofrer, transportando nas minhas, as tuas lágrimas de um choro que não pára e as minhas mãos se cerram de dor e de revolta pelo quanto sofreste vã e vilmente, qual leão antes de se lançar sobre as hienas malditas que te acossaram.

A tua, poderia ser a história de uma santa qualquer, à semelhança da Santa Filomena que tanto admiravas pelo sofrimento que lhe reconhecias por devoção. Mas não conhecendo tu o altar dos santos, conheces o altar em que te guardo no meu coração.

Que não se atreva a terra a corromper o teu corpo, que não faça o destino na morte o que os homens não souberam fazer em vida à tua alma. E quando eu partir deste mundo, leva-me de mão dada para os que te quiseram bem para que te possa ver e adorar de novo.
Beijo as mãos num "Muito Obrigado" aos que estiveram do meu lado na última estapa da vida de minha Mãe, quando outros lá não estiveram nos momentos mais difíceis, que só a presença sabe descrever:
  • Prof. Dr. Gorjão Clara (Dir. do Serviço de Medicina II do Hospital Pulido Valente), a quem minha Mãe deveu a vida várias vezes;
  • Dra. Teresa Fonseca (Dra. do Serviço de Medicina II do Hospital Pulido Valente), a quem minha Mãe deveu a vida várias vezes;
  • Dra. Glória Silva (Dra. do Serviço de Medicina II do Hospital Pulido Valente), a quem minha Mãe deveu a vida várias vezes;
  • Corpo clínico do Serviço de Medicina II do Hospital Pulido Valente (médicos, enfermeiros, técnicos e pessoal auxiliar), a quem minha Mãe deveu a vida várias vezes;
  • Corpo clínico do Serviço de Cardiologia e de Pneumologia do Hospital Pulido Valente (médicos em especial o Dr. Nuno Lousada, enfermeiros, técnicos e pessoal auxiliar) pela preciosa assistência que repetidas vezes foi determinante na vida de minha Mãe;
  • Santa Casa da Misericórdia da Venda do Pinheiro e terceiros a pedido desta, com quem tenho uma dívida eterna nos preciosos a atentos cuidados prestados diariamente à minha Mãe;
  • Lar da Santa Casa da Misericórdia da Malveira, onde a minha Mãe foi acolhida com a dignidade que todos os idosos merecem e que se tornou assim, uma extensão da minha própria casa, num cuidado constante que igualmente procurei dar;
  • Aos Amigos que me deram o apoio anónimo em momentos que precisei deles, incluindo em termos logísticos quando foi necessário;
  • Ao meu cunhado que contra-corrente dos demais, se afirmou pela confiança em mim;
  • À Maat e à Maria do Céu pelo cuidado e homenagem prestada nos últimos momentos de vida de minha Mãe;
  • Àqueles que sob o símbolo da Acácia foram fraternalmente preciosos no momento mais doloroso;
  • À minha tia Julieta e primos, que sempre estiveram do meu lado e foram justos no discernimento;
  • Ao Sr. João e Dna. Emília através de quem foi possível alojar a minha Mãe com o conforto desejado.
  • ... e aos demais que a memória, por lapso aqui não inscreveu mas que estiveram também.

5 comentários:

Ana Luar disse...

Um texto que exprime sem dúvida alguma toda a grande admiração que um filho sente por sua mãe.

Eu confesso que inicialmente me senti muito pequenina, tão pequenina que não conseguia sequer imaginar tal sofrimento, quanto mais passar por tudo aquilo.

Mas na continuação da leitura surgiu uma admiração imensa que já sentia antes mas que aumentou por saber que tu meu querido, tiveste uma mãe que não se enroscou no sofrimento fazendo do amor um desconhecido.

Ela gerou um filho, criou, educou e personificou cada detalhe desse filho com todo o amor que não lhe souberam dar.

Foi uma benção teres tido como mãe alguém como a Dª Natalina.
A mesma benção que ela teve de ter como filho alguém que foi e será a personificação de todo o seu amor... Tu.

Um beijo do tamanho do mundo para ti e outro para a Dª Natalina onde quer que ela esteja.

Liliana disse...

Um abraço grande.

Anónimo disse...

Que a Dª Natalina repouse em paz.
Aqui vai o meu abraço para ti
Anselmo

Anónimo disse...

Como disse Ralph Emerson : " Os homens são o que suas mães fizeram deles "

Um abraço ,

Bernardo

Sha disse...

"Se me amas não chores..."

De onde ela está acredito que te sussurra: "Não chores mais por mim. Sorri porque vivo ainda e sempre dentro de ti!"