sexta-feira, março 23, 2007

O falso ladrão ...

Saiu de casa com a mesma roupa de sempre com que mal cobre o corpo. Não fora a tranquilidade que lhe decora a alma e o frio faria tremer ainda mais aquele corpo magro denunciando quão ingrata lhe fora a vida.
O dia será igual aos anteriores e possivelmente aos que lhe seguirão na mesma busca que outros, na mesma condição, demandam em coro silencioso pelo governo diário.
Passam por ele, tão indiferentes quanto distantes todos os que o ignoram, pelas vestes que lhe injustiçam o pensamento e a vontade.

A caminhada fá-la ele calma, agora interrompida por aquela mulher de longos cabelos enfeitados de uma fita azul de cetim, que caíra tropeçando, a quem ele procura ajudar a levantar, estendendo-lhe a mão castigada do tempo, que ela aceita com hesitação, enquanto receosa ante tal figura, segura firme a mala que se franqueara na queda.

Adiante entra num café onde a casa de banho fechada o obriga resignado, a pedir um copo de água, que o empregado serve contrariado, enquanto se apressa a recolher as moedas que clientes haviam deixado como pagamento sobre o balcão e que em forma desajeitada tombam, rolando pelo chão. Saciada a sede, baixa-se e apanha as moedas caídas, que entrega ao empregado que coxeando se precipita para as apanhar.

O dia continuaria igual, remetendo à noite a esperança do sossego, altura em que um braseiro do casebre onde dormia, lhe prometia o calor que lhe fora negado durante o dia. O caminho de regresso, faz-se manso, tanto quanto o de ida e o silêncio fazia-lhe a companhia que não tivera antes.

A atenção apenas lhe fora entretanto despertada por uma carteira caída na soleira de uma porta, que entreaberta denunciava o descuido de quem entrara naquela casa, agora aberta à curiosidade ou à intenção de quem passasse.
Pegou na carteira e lança mão à porta que rangendo, se antecipa ao intuito do toque na campainha para assim entregar o achado.

O barulho da porta acompanha uns passos apressados, enquanto uma mão arrebata a carteira estendida e outra empurra violentamente quem a estende, num julgamento rápido e convicto ante as evidências que os seus olhos procuraram ver.

Estendido no chão, a fome que sentia e a dor na cabeça que resultara da queda vão-se dissipando, enquanto a vida lhe foge do olhar e a luz da lua se vai apagando, entrecortada pela face do homem que o agredira, que se aproximara coxeando, agora secundado por uma cara de mulher, de onde pendiam uns longos cabelos, enfeitados de uma fita azul de cetim.

7 comentários:

Maria Carvalho disse...

Só me ocorre dizer: dramático. ' O hábito não faz o monge', um ditado que é esquecido nestes tempos de estupidez. Um texto magnificamente escrito, como todos os escritos por ti. Mais uma vez. Bis. Beijos meus, Rui.

Mikas disse...

Gostei muito de conhecer este livro aberto, desejo um óptimo fim de semana

Zeca disse...

Simplesmente maravilhoso, gosto da maneira como colocas os teus temas e as lições de vida que nos deixas escritas nunca serão "Apenas Palavras".

Um abraço Rui

Urban Cat disse...

É uma realidade...nua e crua.
Algo que aprendi a contrariar de uma forma possitiva.
Não virar a cara, mas olhar por quem precisa.

Gostei muito deste post.

Bjs e até breve.

Azul disse...

Olá Rui!

É a realidade, infelizmente, que temos. Algumas pessoas preferem julgar do que perguntar se os outros precisam de ajuda ou mesmo dar um simples gesto de afecto.

Lindo o texto.
Um grande beijinho
Azul

Ana Luar disse...

Os julgamentos precipitados levam muitas pessoas a cometer as maiores injustiças. Parafraseando a Paula: "dramático" mas real.

Anónimo disse...

Em que seres nos tornamos... avaliamos os outros pela aparência, fazemos juízos de valor, deixamos de nos olhar nos olhos.
Onde "Obrigada", "por favor", "bem haja" estão em vias de extinção
Obrigada pelas tuas magníficas palavras que me fizeram sorrir e continuar a acreditar que ainda existem seres humanos.
Beijo Doce