domingo, janeiro 04, 2009

Minha Mãe ... o auto da viagem (25-12-1929 ... 4-1-2007)

- Quem és tu ? Pergunta-lhe aquela voz a coberto da noite.
- Eu ?! Sou eu mesma, filha de ninguém, que dá pelo nome do meu pai.
- Para onde vais ?
- Vou para além do nada, de onde ninguém ousou voltar e onde não quero chegar.
- Que horas são ?

- São horas do verbo, que as estrelas já anunciaram muito antes de mim.

- Que passes então.

Escolhida a sina, ergueu-se do ventre que repousava sobre um colchão de coral e conchas e entrou na barca, que a esperava ancorada à porta que não se fechara para deixar entrar pequenas ondas que chegavam até aos limites do quarto onde nascera.
Na proa, um homem agachara-se para pegar o cabo que o prendia umbilicalmente ao silêncio e com ele recolheu o ferro de fundear. Era chegada a hora de zarpar na legião ao som das sirenes e ao ritmo do bater nas solas que calçavam os que por ali passaram antes dela e que voltariam a chegar depois.
Mais atrás, a sorte escondeu a cara dos justos e com o negro da alma, foi lançando marcas na esteira deixada nos recortes das marés, que bandos de gaivotas e pelicanos iam debicando em voos picados do alto, como ordens dadas por um Deus esquecido sobre dunas nas margens.

- De onde vens ? Pergunta-lhe adiante uma voz azul, vestida de ferro, erguendo-se das águas vinda de estibordo.
- Venho daqui mesmo, onde o aqui e o além habitam o mesmo espaço.
- Que pretendes ?
- Quero tudo o que uma mão vazia pode dar a quem tem menos ainda.
- Que ofereces ?
- Nada menos que tudo o que ainda sei fazer para dar.

- Que passes então.

O vento soprou manso, em brisas grávidas de penas brancas, com que se vestiam as garças que iam pousando nas amuradas a olhar o horizonte e delas tirava-lhes o olhar para tingir a espuma da rebentação das ondas.
Uns cabelos de mulher faziam coro com o ondular das águas que vagas tomavam de assalto à ré, enquanto a roda de proa serpenteava na tormenta o destino da rota que as gentes haviam imposto ao leme e gravado em rombos no casco que a linha d’água teimava em ignorar.
Enquanto a barca cor de chumbo ia avançando, uma mulher santa vestida da mesma luz branca de quem se dizia ser filha, aproximava-se por bombordo, caminhando silenciosamente sobre as águas.

- Sabes quem és ? Pergunta-lhe em palavras que só o silêncio que aprendera a falar decifrara.
- Eu ?! Sou eu mesma, filha de ninguém, que dá pelo teu nome como dei antes pelo do meu pai.
- Sabes para onde vais ?
- Vou para além do nada, de onde ninguém ousou voltar e onde a vida me ensinou a querer chegar.
- Sabes que horas são ?
- Foram horas do verbo, agora minhas também, que as estrelas voltarão a marcar muito depois de mim.

- Que passes então.

A barca agarrou a maré e zarpou ao ritmo do cantar triste dos mastros que se despiam das velas, para as entregar de agasalho ao cálice sagrado que esventrava o corpo da mulher debruçada sobre a retranca, de onde as lágrimas escorriam em linhas de sal, donde o mar se alimentava na sede que não acabava.
Nas margens, mulheres de negro agitavam as vozes, num cântico quente que as mãos arrefeciam em orações escondidas, enquanto acendiam fogueiras tomando no farol da guia, a função, para lançar barcos e gentes ao embate sinistro no aflorar das rochas pelo calado dos navios.
Alguns, iam vendo mãe e filho, cada um de mãos agitadas nos remos de acácia, que a esteira denunciava ao longe a sotavento, onde o sol se punha, mesmo do lado de lá, de onde vinha diariamente o dia seguinte e onde haveriam de chegar, já cansados de gritar na noite.

Na praia, uma mulher desceu do altar dos tempos e chegou-se ao abrigo do ancoradouro, cuidando desembarcar apenas quem a ela se achegasse na imagem e na condição. Olharam-se as duas, enquanto os pés e as almas de ambas pisavam o mesmo tecto a que o chão elevara nas alturas, afastadas da faina que barcos e pescadores prosseguiam na indiferença, que o filho, no castelo da proa desconhecia, fazendo-se sozinho ao mar enquanto calçava as luvas sagradas da mesma cor com que iniciara as suas próprias mãos, que acharia sempre pequenas. As mães, essas, têm as mãos grandes.

- Que horas são ? Pergunta-lhe a mulher.
- É meia-noite e chegada a hora do descanso, que as estrelas hão-de anunciar para sempre aos que me amam.
- Para onde vais ?
- Vou para o Oriente eterno, onde nasce o Sol, para voltar a ser tudo.
- Quem és tu ?
- Eu ?! Sou Mãe, filha da luz que guiou a proa do meu barco, a quem o meu Filho chama agora pelo teu nome.

- Que passes então.

(Texto dedicado à minha e às "minhas" Mães de luvas brancas)

2 comentários:

Anónimo disse...

Profunda, profunda beleza.

Pe.Frederico Mira George.'.

Maria Azenha disse...

...já o tinha dito, mas reafirmo; belíssimo.

P.P.


***maat