segunda-feira, dezembro 17, 2007

O milagre da rosa


O olhar atravessava a vidraça, uma vidraça invisível que só o tempo e a distância os separavam.
Vira um sem número de vezes aquele homem, sentado, olhando o jardim, com um silêncio quase ensurdecedor. O seu olhar era atento, tão atento que tomava no centro, tudo quanto alcançava na periferia e quando a olhava nos olhos, o silêncio tomava a forma das palavras que nenhum dos dois ousava dizer.
Periodicamente, com a cadência da vida aquele homem voltava ao mesmo lugar, como se viesse para alimentar a alma com tudo quanto via. Tinha fome daquela beleza toda que aquele jardim lhe oferecia. Já não era só o corpo quem lho pedia, era também a alma que lho exigia.
Trazia com ele, sempre o mesmo sorriso branco de aragem, que não se sabe ler excepto quando se sente o aroma de rosas, vindo da que elegantemente ele cuidava e tomara como sua, até ao momento que aguardava para falar uma linguagem que já não recordava.
Tantas as vezes que ela vira aquele homem, como se esperasse por algo ou alguém, que não aparecera durante anos e por quem aprendera a esperar com o tempo ao lado.

Nesse dia ela iria mudar tudo. Iria ver o mesmo jardim com os olhos dele e decidida, iriam partilhar o pão que nesse dia ela cozesse, como se procurasse com isso, saciar uma ausência que já não queria.
Firme, aproximou-se dele em silêncio e apontou-lhe generosa, o caminho que ambos percorreram até à porta da casa onde lhe serviria do mesmo que ela comesse ou bebesse, no mais genuíno gesto que conhecera de dádiva.

Já de saída, enquanto uma das mãos, lenta, parecia pentear com os dedos os cabelos dela, com a outra deixava-lhe o seu único bem, a sua rosa, que do tom pérola tomara agora a cor dos lábios.
Ela, das mãos, por destino daria àquela rosa a jarra mais transparente que ela conhecia, e que viria a revelar-se ser a escolha justa, pelos dias que a mesma duraria, majestosa e graciosa, preservando o aroma, tanto quanto a memória de quem a dera, o permitia.

Já passados os dias que as mãos já não contavam, preparava-se para votar aquela rosa à secagem entre as folhas de um livro, num gesto que apenas reservava para as flores que lhe eram especiais e que queria memorizar nas tábuas do tempo que vivera feliz.
Enquanto tomava nas mãos aquela rosa que se vergava ligeiramente, resignada à poda que a levara até ali, repara que do caule brotavam duas pequenas folhas, dum verde tímido que teimava em fazer viver o milagre que antes parecera não existir mais.
Surpreendida, iria agora levar aquele caule de volta ao jardim, onde com o homem que lha dera, o plantaria onde o sol mais chegasse e o frio poupasse.
Iria ver crescer aquele caule obstinado ao destino e as folhas que o enfeitavam, todos dias através da mesma vidraça, até que já com rosas feitas, o homem entrasse e lhas trouxesse, num novo ciclo de renascimento.

6 comentários:

Ana Pallito disse...

Muito, muito especial esse renascimento. Foi-me possível ver os brotinhos a ressurgir.

Abraço caloroso
Ana

Ana Luar disse...

Por muito obstinado que se seja, jamais alguém conseguirá intervir com o ciclo permanente do renascimento, que ansioso aguarda pelo abraço dos raios solares para desencadear os processos fundamentais da vida. Se tivesses confinado a “tua rosa” às páginas de um livro, ela jamais renasceria. Por vezes para que exista a hipótese de um renovamento, é necessário que exista um cuidado acrescido a tudo o que se nos aparenta como morto.
Não se luta contra a “ “natureza”… Seria o mesmo que remar contra a maré.
Engraçado, comprei nos últimos dias um livro que fala exactamente sobre esse tema… O renascimento! Não só o renascimento na natureza, (como o caso da tua rosa) mas tb um renascimento como parte de um processo de mudança no qual se olha a vida com uma nova perspectiva.
Tenho sempre em mente a frase de Erich Fromm que diz algo assim:
A principal tarefa na vida de um homem é a de dar nascimento a si mesmo.

Pronto lá me alonguei eu novamente... Quando começo é dificil de parar... como as folhinhas da tua rosa, as palavras brotam, brotam, brotam... (sorrisos)

*Um Momento* disse...

E assim se ressuscitou ...
belo o que senti ao ler-te

Desejo-te um Santo e Feliz Natal a ti e aos teus,cheio de coisas boas
Beijo Terno...em ti
(*)

Sha disse...

Sabes que os milagres acontecem...?

;)

Beijo doce
Sha

Urban Cat disse...

Rui
passei para deixar um beijo especial.

Feliz Natal

Gasolina disse...

Quando tudo parece perdido, a resistência da intenção oferece o verde olhar sobre a vida.
Ciclos que se renovam.

Um beijo, tudo de bom.