quinta-feira, fevereiro 12, 2009

Entre o frio e a neve

A neve era a única novidade que ali lhe servia de companhia, pois o frio, esse, ele já o conhecia de cor. Aquele frio que não se vê mas que se disfarça no ar que se respira e toma conta do peito, por mais agasalhos que se imponham ao corpo, que mesmo assim se sente o frio até ao último recanto em que nos reconhecemos.

Nem a música que convidava ao embalar dos corpos na sala ampla do bar, onde espirais de fumo ondulavam numa ascensão em busca de uma saída que não encontravam, acumulando-se em concílio no tecto, nem o corrupio dos copos pelas mãos e gargantas lhe toldavam quaisquer pensamentos que fossem submergindo no álcool para logo emergirem numa vontade que lhe cerrava as mãos, já tão geladas quanto castigado o corpo pela aragem fria que cortava o espaço vindo da encosta da serra.
O olhar atravessava transparentes tudo e todos à sua volta e nos ouvidos apenas entrava o silêncio que ali ninguém usava ouvir, ao som de uma música que a atenção teimava em ignorar para num impulso previsto, estender os passos para a rua que a noite convidava ao recolher dos sensatos.

Mesmo assim, saiu. A neve que cobria a placa de cimento quadriculado que servia de passeio, foi servindo de pauta, onde ia registando os passos cadenciados num andar tão lento como o passar das nuvens que apenas se denunciavam quando impediam a Lua de o ver caminhar, numa cumplicidade silenciosa. Ali estava ele, no cimo de uma montanha, algures no mundo, onde ninguém o conhecia nem dele achava a presença ou a falta. Que vontade a de se lançar com o vento, como se tivesse asas que o levassem sobre a encosta num voo planado que não chegasse ao vale, onde todas as subidas terminam resignadas num regresso inevitável.

Sentou-se numa pedra na beira do caminho, que alguém havia amparado com o monte de neve que fora retirada da estrada, formando com esta uma barreira convergente, obrigando pessoas e viaturas a partilharem o mesmo trilho que dois traços escuros e paralelos estendiam até lá longe, onde o caminho desaparece numa curva furtiva ao olhar.
A pedra, essa, ele também a conhecia, como a tantas outras onde costumava sentar-se em silêncio, sempre que esperava por nada nem ninguém, numa partida ou regresso desconhecidos que lhe haviam ensinado a calar. Pegou no telemóvel e olhou-o como se entreolhassem mútua e demoradamente num apelo a conselho, tanto tempo, quanto o que precisasse para erguer o olhar e permitisse que os dedos gelados deixassem de sentir a pressão nas teclas e se submetessem à vontade de marcar o número, que dividia entre o contacto e o de dias que haviam passado e lhe marcavam o pensamento.

Entretanto ia olhando o céu, já escuro, onde alguém havia espalhado Lua e estrelas num capricho de formas que nunca aprendera a conhecer mas que o observavam como se o conhecessem, esboçando pequenos sorrisos ao de leve que se reflectiam no manto branco que o cercava, salpicado de outros tantos pontos negros, por onde alguém havia passado e o acaso imitava.
Naquele lugar ali, entre os homens e os deuses, onde aqueles se elevam e estes se abaixam, seria ele o único a estar ali àquela hora, sentado naquela pedra, como interlocutor de um diálogo solitário com o mundo, que tentava contrariar por momentos. Estes passados, dariam lugar a que se levantasse e se vestisse do frio da noite, para seguir pela mesma estrada, caminhando onde ainda não houvesse pegadas, sabe-se lá até onde chegasse.
Ali e naquele momento, a neve era a única novidade que lhe servia de companhia, pois o frio, esse, ele já o conhecia de cor.