quarta-feira, março 04, 2009

Ad perpetuam memoriam



Neste dia e hora, fechou-se mais um ciclo de tudo aquilo que fui e sou. É chegada a hora de colher as pedras espalhadas sobre este caminho que percorri e com elas, reconstruir-me de tudo o que aprendi e com isso, dar-me a uma oportunidade de renascer, mesmo que numa partida dos olhares profanos.
Este blog nasceu na noite e em tempo de um luto eterno e terminou no apartar de tudo o que um viver antigo não cuidou, seja na vontade, seja no cumprir de um destino que homens e deuses traçaram na prancha do tempo.
É-me assim, chegada a hora de partir daqui e ir para outro lugar de onde não saí e onde a vontade me fez chegar de luvas brancas.
As palavras, essas, cuidarei de assentá-las sobre as folhas de papel com que farei o meu livro que será entregue ao meu Filho, para que dele saiba ler de quem nasceu e assim, com outra Luz igual, saiba iluminar o caminho que percorro devoto ao Sagrado onde planto uma Rosa de Chá com pétalas de cristal.
Deixo aqui, o meu Abraço sentido a todos os que souberam estar comigo, perante os quais me inclino num respeito profundo ao passado de que fizeram parte, ao presente em que os guardo na memória e ao futuro em que serão sempre lembrados.
A todos vos deixo os votos de Paz Profunda e o meu Eterno Obrigado.

Rui G.

Pretium doloris

Chamou Zeus deuses e homens a terreiro,

Na hora e momento que achou por direito,

Na chegada do dia quarto do mês terceiro,

Tornando o espaço das margens ali mais estreito,

Para que chegassem todos sem que primeiro,

Afastassem quem inocente estivesse no peito.

Tomou então Cronos conta do tempo,

Enquanto Ares ali tomou igual assento.

Eram uns e outros que à volta ficaram,

Daquela, como outra mesa em altar se fizesse,

Separando o que apenas homens juntaram,

Menos um Deus que não levaram, ali estivesse,

E porque de vez, juntos, uns arrasaram,

Tudo o que na memória ainda houvesse,

Eis que presentes, o nome inscreveram,

Nas sortes dos que ausentes antecederam.

Afastada das sortes Afrodite se lamentava,

Pelo que perdera e mais não achara,

Fez o caminho que Héstia já desbravava

No peito e lar vazios que também tomara,

Eis que da ira ao olhar vago tudo estava,

Devolvendo às mãos de quem ignorara,

Vieram ao pensar causas mais antigas,

Que muito mais foram que meras brigas,

Foi então que Hades da morte, ainda dorido,

Se fez chegar ao recanto da memória,

Invocando na dor quem tivesse já partido,

Mas que ali houvera de fazer também história,

De tudo o que havia sido já sofrido,

Tanto que pelo mal, ninguém tem glória.

Diz-se por isso que não haverá bem que sempre dure,

Nem maleita que mais que aquele haja ou perdure.

Terminado o preceito, Zeus se levantou,

Dizendo aos que estando assim ouviram,

Sigam caminhos diversos quem aqui assentou,

Que justo e certo foi feito aos que tudo isto viram,

E porque dúvida não existe nem restou,

Seja a deuses ou a homens que o decidiram,

Seja para sempre, o que à memória o tempo traz,

Seja sempre justo, todo aquele que por bem faz.

(R.N. Almada, 4-3-2009)

terça-feira, março 03, 2009

O Mestre

Sentado numa pedra velha e gasta à beira do caminho, um homem ainda jovem olhava o horizonte. Aquele era o lugar por onde costumavam voltar os que por quem se habituava a esperar, normalmente na teimosia da saudade.

Mas naquele dia, era apenas na vontade que voltassem os que lhe pudessem ensinar o que não chegara a aprender até então, que o fazia sentar-se ali numa esperança vã de resposta.

Observar, ouvir e aprender, fora sempre a sua caixa de ferramentas, a princípio na inocência de menino aprendiz de tudo o que a vida ainda lhe tinha para ensinar, mais tarde na mestria que todos lhe confiavam pela idade adulta.

Ainda tinha presente na memória, os momentos que a par com as corridas e voltas de bicicleta, olhava curioso, fosse as batidas nos aros que uniam as aduelas, que homens atarefados acometiam barris, pipas e dornas no armazém em frente à sua casa, fosse o esforço vigoroso do sapateiro ao fundo da rua, no manipular sábio das cevelas de meia-cana feitas das varetas dos chapéus e das facas afiadas aproveitadas das folhas de serra.
Tudo era visual e cuidadosamente registado na sua memória, como uma sequência de imagens que ia colando na caderneta de conhecimentos vários, duma colecção que não acabava.

As palavras, essas, ia-as inscrevendo na memória dos sons, a que se juntavam todos os que lhe ocupavam a recordação, quer das velhas canções e fados a que a voz materna emprestava melodias outrora habituais nos serões familiares, quer de todos e cada um dos sons que se lhe haviam tornado comuns e constantes na casa onde crescera, desde o tic-tac do velho relógio de sala, até aos sons metálicos e secos do toque das panelas na cozinha.

À sua volta tudo era absorvido, num acto de insaciável de aprender, tanto quanto a sua vista e atenção fossem capazes de alcançar, fosse apenas por esperteza ou pela inteligência que atribuíam àqueles olhos vivos e irrequietos, numa busca constante.

Mais tarde, já adulto, na inversão do entendimento, menos julgavam ensinar-lhe e mais aprender com ele. De filho e criança aprendiz, passara à idade adulta, para ensinar tudo o que a vida lhe havia ensinado e o que entretanto havia aprendido, aspirando por isso, à condição do mestre, que alguns lhe chamavam agora.

Mas naquele dia ele não sabia as respostas. Aquele pequeno ser diante de si, continha todas as perguntas e todo o conhecimento ancestral que o mundo havia compilado num espaço tão pequeno, que nem todo o universo chegaria para preencher. Ali e naquele momento, voltara da condição de Mestre à de Aprendiz.

Ali, tinha de novo tudo por aprender, agora que se tornara Pai.

quinta-feira, fevereiro 12, 2009

Entre o frio e a neve

A neve era a única novidade que ali lhe servia de companhia, pois o frio, esse, ele já o conhecia de cor. Aquele frio que não se vê mas que se disfarça no ar que se respira e toma conta do peito, por mais agasalhos que se imponham ao corpo, que mesmo assim se sente o frio até ao último recanto em que nos reconhecemos.

Nem a música que convidava ao embalar dos corpos na sala ampla do bar, onde espirais de fumo ondulavam numa ascensão em busca de uma saída que não encontravam, acumulando-se em concílio no tecto, nem o corrupio dos copos pelas mãos e gargantas lhe toldavam quaisquer pensamentos que fossem submergindo no álcool para logo emergirem numa vontade que lhe cerrava as mãos, já tão geladas quanto castigado o corpo pela aragem fria que cortava o espaço vindo da encosta da serra.
O olhar atravessava transparentes tudo e todos à sua volta e nos ouvidos apenas entrava o silêncio que ali ninguém usava ouvir, ao som de uma música que a atenção teimava em ignorar para num impulso previsto, estender os passos para a rua que a noite convidava ao recolher dos sensatos.

Mesmo assim, saiu. A neve que cobria a placa de cimento quadriculado que servia de passeio, foi servindo de pauta, onde ia registando os passos cadenciados num andar tão lento como o passar das nuvens que apenas se denunciavam quando impediam a Lua de o ver caminhar, numa cumplicidade silenciosa. Ali estava ele, no cimo de uma montanha, algures no mundo, onde ninguém o conhecia nem dele achava a presença ou a falta. Que vontade a de se lançar com o vento, como se tivesse asas que o levassem sobre a encosta num voo planado que não chegasse ao vale, onde todas as subidas terminam resignadas num regresso inevitável.

Sentou-se numa pedra na beira do caminho, que alguém havia amparado com o monte de neve que fora retirada da estrada, formando com esta uma barreira convergente, obrigando pessoas e viaturas a partilharem o mesmo trilho que dois traços escuros e paralelos estendiam até lá longe, onde o caminho desaparece numa curva furtiva ao olhar.
A pedra, essa, ele também a conhecia, como a tantas outras onde costumava sentar-se em silêncio, sempre que esperava por nada nem ninguém, numa partida ou regresso desconhecidos que lhe haviam ensinado a calar. Pegou no telemóvel e olhou-o como se entreolhassem mútua e demoradamente num apelo a conselho, tanto tempo, quanto o que precisasse para erguer o olhar e permitisse que os dedos gelados deixassem de sentir a pressão nas teclas e se submetessem à vontade de marcar o número, que dividia entre o contacto e o de dias que haviam passado e lhe marcavam o pensamento.

Entretanto ia olhando o céu, já escuro, onde alguém havia espalhado Lua e estrelas num capricho de formas que nunca aprendera a conhecer mas que o observavam como se o conhecessem, esboçando pequenos sorrisos ao de leve que se reflectiam no manto branco que o cercava, salpicado de outros tantos pontos negros, por onde alguém havia passado e o acaso imitava.
Naquele lugar ali, entre os homens e os deuses, onde aqueles se elevam e estes se abaixam, seria ele o único a estar ali àquela hora, sentado naquela pedra, como interlocutor de um diálogo solitário com o mundo, que tentava contrariar por momentos. Estes passados, dariam lugar a que se levantasse e se vestisse do frio da noite, para seguir pela mesma estrada, caminhando onde ainda não houvesse pegadas, sabe-se lá até onde chegasse.
Ali e naquele momento, a neve era a única novidade que lhe servia de companhia, pois o frio, esse, ele já o conhecia de cor.

quinta-feira, janeiro 22, 2009

A manta de retalhos


Uma silhueta era moldada por um sol complacente em fim de tarde, camuflando uma cara alva onde o olhar fazia alvo na distância que uns olhos castanhos alcançavam no espaço além dos prados verdes que a encosta conduzia até aos penhascos para aí se debruçarem sobre um mar revolto, que o vento imitava no serpentear caprichoso dos cabelos dourados que compunham uma figura jovem de mulher, que o tempo teimava em conservar uma face de menina.

Aproximava-se a hora de Aghna deixar a casa onde fora criada para, qual ramo jovem e verdejante, lançar as suas próprias raízes no lugar onde o destino lhe guardara apego para aí florir. Agora mulher feita, iria lançar ao vento os frutos que a terra haveria de alimentar pelo seio maternal. Não distantes haviam passado os tempos em que ainda pequenina, se passeava entre campos e gentes num pequeno vestido branco às bolas coloridas que a mãe lhe havia feito em horas sagradas de veneração ao que lhe era mais belo, num culto a que não se ficava indiferente ao olhá-la.

Seguindo a tradição local, lhe deu a mãe para quando partisse, o que de melhor poderia ter, para que com isso, tivesse começo de vida arranjado e pronto, de acordo com as posses e feitio. Não havia recebido afinal o que as demais com a sua idade haviam esperado e recebido, de encontro às expectativas habituais. Não havia sido dinheiro, cortes de tecido fino ou jóias que lhe haviam dado por enxoval. Seria tal a pobreza que desconhecia na casa onde fora criada, que melhor legado não havia merecido ? Esta pergunta decorava-lhe triste o pensamento numa revolta igual ao mar que observava diante de si, que agora servida de fundo à conversa que recordava com sua mãe e que ainda lhe estava presente na recordação e aí haveria de ficar por muito tempo, tanto quanto tem a memória.

- Aghna. Fora assim simples, o chamamento naquele tom familiar que os ouvidos se habituaram a identificar na voz materna.

- Vem aqui filha. Há algo que te quero dar, pois é chegada a altura de o fazer.

Aghna aproximou-se lenta e expectante diante aquela mulher a quem aprendera a parecer-se no jeito e na forma, enquanto as duas se sentavam na beira da cama, debruçadas em coro sobre uma arca feita de carvalho. As duas entreolhavam-se cara a cara, qual reflexo uma da outra, distanciadas apenas pela idade, que o tempo marcara no escurecer dos cabelos, qual medida do ensinamento que a vida ia deixando no cabelos das duas, entre o dourado e um castanho que o futuro prometia pratear mais tarde.
Com mãos delicadas e num gesto cerimonial, quase ritual, a mãe ia abrindo a velha arca de carvalho, donde ia tirando comovida, uma manta extensa e pesada, que ao longo dos anos foi fazendo com pequenos pedaços de pano, que antes haviam tido honras de peças de roupa, com que havia já coberto o corpo, que a idade não atraiçoara aos olhares dos que a viam passar.

- Toma filha, esta é a melhor peça que te posso dar. As mãos estendiam-se, segurando nelas a manta em voltas dobradas, quase tantas quantas a vida já lhe dera por passado.

- Isso mãe ? Que posso fazer eu com essa manta velha feita de retalhos ? A formalidade da ocasião apenas reforçou a desilusão no quanto sentia singela o legado que ora via como herança.

- Filha, olha bem para ela. Olha para os pequenos pedaços de tecido com que a fiz. Aqui podes ver, um pedaço do primeiro vestido que a minha mãe me fez. Aqui, outro pedaço do vestido que usei quando ia para a escola e aqui, outro de quando me casei e este decerto que te recordas, pois foi do teu primeiro vestido. Foi com esta manta que fui tecendo com pedaços da minha vida, que me abriguei do frio, quando não tinha mais nada para aquecer o meu corpo.

- Mãe, bordaste aqui isto. Os olhos de Aghna ergueram-se, agora de surpresa, olhando na mãe os longos cabelos de seda que sempre admirara.

- Aqui no canto filha, bordei o meu e o teu nome. Fi-lo com fios do meu próprio cabelo, para que me sintas junto de ti quando te cobrires com esta manta. Na verdade, tal como me recordares, também eu sou como ela, um conjunto de retalhos de vida, feita de pessoas e de momentos, que pouco a pouco fui tecendo e juntando, para me fazer a mim própria. Foi com essa manta que sempre que senti frio, cobri a nudez do meu carácter, para ser quem sou.

domingo, janeiro 04, 2009

Minha Mãe ... o auto da viagem (25-12-1929 ... 4-1-2007)

- Quem és tu ? Pergunta-lhe aquela voz a coberto da noite.
- Eu ?! Sou eu mesma, filha de ninguém, que dá pelo nome do meu pai.
- Para onde vais ?
- Vou para além do nada, de onde ninguém ousou voltar e onde não quero chegar.
- Que horas são ?

- São horas do verbo, que as estrelas já anunciaram muito antes de mim.

- Que passes então.

Escolhida a sina, ergueu-se do ventre que repousava sobre um colchão de coral e conchas e entrou na barca, que a esperava ancorada à porta que não se fechara para deixar entrar pequenas ondas que chegavam até aos limites do quarto onde nascera.
Na proa, um homem agachara-se para pegar o cabo que o prendia umbilicalmente ao silêncio e com ele recolheu o ferro de fundear. Era chegada a hora de zarpar na legião ao som das sirenes e ao ritmo do bater nas solas que calçavam os que por ali passaram antes dela e que voltariam a chegar depois.
Mais atrás, a sorte escondeu a cara dos justos e com o negro da alma, foi lançando marcas na esteira deixada nos recortes das marés, que bandos de gaivotas e pelicanos iam debicando em voos picados do alto, como ordens dadas por um Deus esquecido sobre dunas nas margens.

- De onde vens ? Pergunta-lhe adiante uma voz azul, vestida de ferro, erguendo-se das águas vinda de estibordo.
- Venho daqui mesmo, onde o aqui e o além habitam o mesmo espaço.
- Que pretendes ?
- Quero tudo o que uma mão vazia pode dar a quem tem menos ainda.
- Que ofereces ?
- Nada menos que tudo o que ainda sei fazer para dar.

- Que passes então.

O vento soprou manso, em brisas grávidas de penas brancas, com que se vestiam as garças que iam pousando nas amuradas a olhar o horizonte e delas tirava-lhes o olhar para tingir a espuma da rebentação das ondas.
Uns cabelos de mulher faziam coro com o ondular das águas que vagas tomavam de assalto à ré, enquanto a roda de proa serpenteava na tormenta o destino da rota que as gentes haviam imposto ao leme e gravado em rombos no casco que a linha d’água teimava em ignorar.
Enquanto a barca cor de chumbo ia avançando, uma mulher santa vestida da mesma luz branca de quem se dizia ser filha, aproximava-se por bombordo, caminhando silenciosamente sobre as águas.

- Sabes quem és ? Pergunta-lhe em palavras que só o silêncio que aprendera a falar decifrara.
- Eu ?! Sou eu mesma, filha de ninguém, que dá pelo teu nome como dei antes pelo do meu pai.
- Sabes para onde vais ?
- Vou para além do nada, de onde ninguém ousou voltar e onde a vida me ensinou a querer chegar.
- Sabes que horas são ?
- Foram horas do verbo, agora minhas também, que as estrelas voltarão a marcar muito depois de mim.

- Que passes então.

A barca agarrou a maré e zarpou ao ritmo do cantar triste dos mastros que se despiam das velas, para as entregar de agasalho ao cálice sagrado que esventrava o corpo da mulher debruçada sobre a retranca, de onde as lágrimas escorriam em linhas de sal, donde o mar se alimentava na sede que não acabava.
Nas margens, mulheres de negro agitavam as vozes, num cântico quente que as mãos arrefeciam em orações escondidas, enquanto acendiam fogueiras tomando no farol da guia, a função, para lançar barcos e gentes ao embate sinistro no aflorar das rochas pelo calado dos navios.
Alguns, iam vendo mãe e filho, cada um de mãos agitadas nos remos de acácia, que a esteira denunciava ao longe a sotavento, onde o sol se punha, mesmo do lado de lá, de onde vinha diariamente o dia seguinte e onde haveriam de chegar, já cansados de gritar na noite.

Na praia, uma mulher desceu do altar dos tempos e chegou-se ao abrigo do ancoradouro, cuidando desembarcar apenas quem a ela se achegasse na imagem e na condição. Olharam-se as duas, enquanto os pés e as almas de ambas pisavam o mesmo tecto a que o chão elevara nas alturas, afastadas da faina que barcos e pescadores prosseguiam na indiferença, que o filho, no castelo da proa desconhecia, fazendo-se sozinho ao mar enquanto calçava as luvas sagradas da mesma cor com que iniciara as suas próprias mãos, que acharia sempre pequenas. As mães, essas, têm as mãos grandes.

- Que horas são ? Pergunta-lhe a mulher.
- É meia-noite e chegada a hora do descanso, que as estrelas hão-de anunciar para sempre aos que me amam.
- Para onde vais ?
- Vou para o Oriente eterno, onde nasce o Sol, para voltar a ser tudo.
- Quem és tu ?
- Eu ?! Sou Mãe, filha da luz que guiou a proa do meu barco, a quem o meu Filho chama agora pelo teu nome.

- Que passes então.

(Texto dedicado à minha e às "minhas" Mães de luvas brancas)

quarta-feira, dezembro 24, 2008

Pelo caminho do Pai Natal ...


23h55- Olá papá … Hummmm, que abraço bom …

24h00 - Ohhhh, que barulho é este ? Parece que bateram à porta, quem será ?
24h00 - Olha, o Pai Natal deixou os sacos dos brinquedos à porta ! Bem me pareceu ver o trenó quando vinha para cá.
24h02 - Onde está o Pai Natal, papá ? Deve ter ido embora porque tinha muitos meninos para visitar.
24h05 - Papá, olha, era mesmo o que eu queria …

24h59 - Até amanhã meu querido, dorme bem. Tem uma noite feliz.
01h00 - Onde vais papá ?
01h01 - Vou para casa ... pelo caminho do Pai Natal …

quinta-feira, dezembro 11, 2008

Pai... (16-5-1921 ... 11-12-2004)

Pai,

Aprendi cedo a chamar-te,
Aprendi em seguida o teu nome,
Aprendi mais tarde a ouvir-te,
Aprendi tardiamente a ver-te,

Aprendi depois a viver sem ninguém,
... mas,
nunca cheguei a aprender a viver sem ti.

sexta-feira, dezembro 05, 2008

Alquimia


É de corpo e alma numa senda maternal,
Qual cálice aberto ao aroma do melhor licor,
Que a vontade domina o tempo e a dor,
Fazendo de só um, tudo e só o principal.

E como se nada o sendo, fosse normal,
O que a Alquimia subtrai a quem é sofredor,
Junta-se-lhe um pouco mais de dor,
Para ver chegado daquele a hora paternal.

Somam-se olhares, anseios, silêncios e ciência,
Não se sabendo se nisso os deuses estão alheios,
Seja mesmo assim da vida, achada a essência.

Se não por outros, sejam estes os meios,
De achar nas mãos o destino que era ausência,
E que de amor filial fiquem dois corações cheios.
.

Dia 5-Dezembro-2002: fertilização in vitro pelo método ICSI. Alquimia da vida.

sexta-feira, novembro 28, 2008

A assinatura

O silêncio tinha uma tonalidade cor de pérola e ambas as mãos sobre a mesa pareciam guardiãs resolutas e mudas de uma vontade que não as fazia sequer tremer.
Tão natural como respirar, uma delas tomou a caneta e traçou um bailado repetido e ensaiado mil vezes, deixando a marca conhecida e reconhecida dos passos que os dedos aprenderam a adestrar.

Ambos estavam presentes de um e do outro lado da mesa, quietos e presentes e a emoção foi a única que não fora chamada a testemunhar o momento, diz-se porque tenha ficado há muito pelo caminho que os conduzira ali naquela hora.

O frio entrou pela porta de casa que se abriu, para se juntar ao da sala onde as mãos iniciadas tomaram as folhas brancas e traçadas a coberto dos olhares para as levarem onde o mundo lhes fizesse de facto a decisão tomada.
De saída, a chuva a cair dava voz aos passos únicos de passeio enquanto as mãos nas algibeiras procuravam o calor solitário que o peito já remetera para o passado como se o mundo já tivesse sido todo feito de neve e gelo que ora o degelo testemunhava.
Chegasse a noite para se esperar apenas pela manhã.

sexta-feira, novembro 07, 2008

O boneco de neve

Aceline era uma menina feliz que corria feliz entre o vale e o bosque que lhe ladeavam a casa. Aquele era o seu mundo, cuja fronteira era delineada pelos sonhos que lhe pintavam o sorriso e o abraço de tudo o que o olhar alcançava e que os braços pequeninos queriam agarrar.
O amor, esse, ela conhecera-o sempre entre o pai, a mãe e todos os que encontrava ao seu alcance, fossem animais, flores ou gentes de passagem ou visita, que no tempo a memória atraiçoava por vezes.

Ciclicamente o inverno aparecia e com ele, tudo e todos pareciam esconder-se como se alguém tivesse apagado tudo à passagem e um quadro multicolor ficasse reduzido a um manto branco e a contornos pardos que nem as sombras conseguiam colorir. Era a altura em que Aceline perguntava receosa pelas flores, pelas folhas das árvores e pelos pássaros que já não via nem ouvia e que receava se tivessem aborrecido com ela e partido para sempre.

Só e sem mais ninguém com quem brincar, Aceline decidiu juntar a neve em frente à casa e com ela, foi dando forma a um boneco de neve em que ela própria foi servindo de modelo nas proporções com que ia dando forma ao que antes era um monte disforme de uma massa branca e fria que lhe enregelava as mãozitas pequenas, apesar das luvas de pele de ovelha que trazia calçadas.
Pouco a pouco o boneco ia ficando mais de acordo com a imagem que concebera, enquanto dois olhos vivos e redondos davam uma expressão de contentamento a uma carita de porcelana que contrastava com os cabelos castanhos claros, que sorrateiros ultrapassavam os limites do gorro, denunciados em pequenos caracóis que o vento embalava ao sabor dos passos incertos mas decididos.
Terminada a obra, Aceline demorou-se a olhar o boneco que fizera e que diante de si, parecia olhá-la também como se ganhasse vida através do olhar que a pequenina lhe devotava, enquanto sacudia das mãos os últimos flocos de neve como quem terminara a obra.

Todos os dias a pequenina Aceline espreitava logo de manhã pela janela, ao acordar, para se certificar que o seu boneco de neve ainda lá estava e este, mantinha-se firme no seu lugar virado para a porta da entrada como que para receber a pequenina, sempre que o tempo permitia e a mãe a deixava sair para brincar na neve.
Aceline cedo se apercebeu que aquele não era apenas um boneco de neve. Era muito mais do que isso, era o seu boneco de neve. Era a sua obra cuja beleza ela via grande como tudo o que poderia alguma vez gostar e gostava tanto dele quanto podia gostar de algo ou alguém, numa paixão em jeito de gente pequenina mas do tamanho de tudo o que a vista alcança.

A pequenina queria levar o boneco consigo para casa, onde ele pudesse estar sempre com ela e longe do frio e da solidão da noite. Contudo sabia que estar com ele em casa seria trocar o seu contentamento pelo desgosto de ver o seu boneco de neve desaparecer diante de si. Como poderia o calor da casa e a sua companhia fazer desaparecer o que ela mais gostava ? Que sentido poderia ter isso ?
Assim, todos os dias Aceline reafirmava por aquele boneco o seu melhor sentimento a que dava vida em diálogos imaginados e de brincadeiras onde o seu boneco ganhava vida e movimento que só os crescidos não entendiam nem ousavam ver.

Contudo, o inverno foi-se despedindo e com o anunciar da primavera o manto branco foi diminuindo e com ele também o boneco de neve foi acusando na forma o passar do tempo, como se o tempo nele acusasse a idade no tempo e deste modo, depressa boneco e manto de neve se transformaram em pequenos riachos de água cristalina serpenteando-se entre pequenos tufos de plantas e flores que começavam a desabrochar.
Aceline viu com desgosto o seu boneco de neve e companheiro desaparecer sem entender porquê. Porque teria ele de desaparecer, ele a quem queria tanto ? E assim, todos os dias ela olhava desgostosa pela janela para o lugar onde antes o seu boneco estava e onde agora se erguia majestosa uma haste de roseira brava.

Não seria capaz de esquecer o seu amado boneco de neve e a saudade fazia-a lembrar-se de todos os detalhes que antes as suas mãozitas haviam criado e percorrido, fazendo-o conhecido de memória e que o tempo não apagava.Cada vez que nuvens brancas se anunciavam no céu azul, Aceline reconhecia nelas a forma e o sorriso do seu boneco de neve, que agora a saudade fazia imaginar numa presença constante que nem o silêncio nem a ausência sabem apagar.

sábado, novembro 01, 2008

Em silêncio póstumo

Viu Hades feita à força a vontade que foi sua,
No aplauso que Perséfone fez por igual ouvir,
Foi na calada da noite, que ao abrigo da lua,
Tanatos e Hypnos de manso se fizeram sentir.
Estes que antes igual a coberto de nefasto dia,
Haviam já cobrado quem por quem já se sofria.

Mas se Hecate viu saber feito o seu intento,
E a morte tomados aqueles como Tífon fez,
Nem Ares nem Poseídon chegarão a ter contento
No rugir do rasgar dos céus, quando for minha a vez.
Ficou tão só o silêncio dos que adormeceram já,
Que é meu também igual aos que já não estão cá.

E se a alma não souber dizer palavra alguma,
Que não seja por não saber sentir ou falar.
Seja antes por não haver das palavras nenhuma,
Que saiba dizer o que o peito mais quer calar.
São hoje lentos os passos entre campas rasas,
Quantos pesam no corpo, a que a consciência pôs asas

Tomem-se nas flores, as que sejam mais sagradas,
Em que igual se torna por ali estar quem as tem,
A Pai sejam cravos e a Mãe as rosas sejam dadas,
E ambos à Filha entreguem aqui destas também.
Sejam por fim a família que além onde juntos estão,
Que aqui vos guarda quem na vida o quis em vão.

quarta-feira, outubro 29, 2008

A cor dos sonhos

O pequeno Nianzu vivia numa pequena aldeia que deuses e homens fizeram plantar num dos imensos vales que se aninham submissos nos sopés das montanhas dos Himalaias.

A necessidade de sobreviver e a perda precoce da família fizera-o percorrer o caminho pedregoso das montanhas para chegar ao mosteiro budista mais próximo, que o destino lhe fizera escolher como recurso na vontade.
Os pequenos olhos escuros percorriam atentos todo o espaço à entrada do templo, como duas pequenas rodas dos desejos, que as faces rosadas faziam elevar como dois pequenos altares da descoberta do mundo.
Naquele dia, ele era um entre outros que como ele, procuravam ingressar no templo que a vida fizera como a opção que à maioria seria negada, fosse na sorte ou na vocação.

Na sala onde se encontrava e fora conduzido por um jovem monge de cabeça rapada, haviam sido colocadas tintas de várias cores, pincéis e folhas de papel pardo, que o monge fizera distribuir cerimoniosamente no respeito antecipado e igual.
Entre o silêncio que dava a mesma cor às palavras e aos pensamentos daquelas caritas de olhar brilhante, deu entrada na sala o lama, que a idade aparente procurava acompanhar na sabedoria que se lhe adivinhava na expressão e modos que ia dispensando a todos e a cada um dos presentes.

Sentados e acomodados, convidou o lama que cada criança pintasse a folha de papel que lhe fora distribuída, com a cor que aquela achasse ser a dos sonhos.
De imediato, cada criança tomou nas mãos uma folha de papel e o pincel, escolhendo entre as cores das tintas à disposição e pouco foi o tempo quanto demorou que diante delas repousassem folhas de papel de cores diversas como uma pequena roda multicolor em torno do velho lama que olhava atento cada uma das obras expostas diante dele.

Perguntando a cada criança o porquê de cada cor escolhida, entre tantas que faziam justiça fosse ao sol, ao céu ou à neve e às montanhas, não tardou que fosse chegada a vez do pequeno Nianzu justificar a sua escolha. Diante dele repousava uma folha onde várias eram as cores, entre as quais imprimira noutras tantas a sua mão.

- De que cor são dos teus sonhos ? Perguntou o sábio lama.
- São da cor das minhas mãos. Respondeu o pequeno Nianzu.

O velho lama, baixou-se diante dele e numa reverência simples tomou-lhe o pincel e na cor da vontade lhe ensinou a escrever aquele que lhe reconhecia no verdadeiro nome ancestral, “Zhiqiang”.

Nota: “Zhiqiang” é um nome chinês cujo significado é "a vontade é forte".

quinta-feira, outubro 16, 2008

Ilda: 13 de Junho de 1950 ... 16 de Outubro de 1955

Escrevem-se no silêncio as palavras que mais nos custam dizer.

Escrevem-se na memória as pessoas que não conseguimos esquecer.

E com todas elas, moldam-se pétalas de flores que num momento íntimo colocamos num altar sagrado onde a vida e a morte se tocam por instantes.

Repousa minha irmã, enquanto te guardo o sono eterno.
Hoje o meu silêncio é teu.

sábado, outubro 04, 2008

O cristal de neve

Os pensamentos esvoaçam como lenços leves de seda, tomados por uma aragem de anos e distâncias que pulsam como se fossem pequenos turbilhões de encontros e saudades rodopiando entre as mãos dos caprichos do ensinamento.

Os pés caminham sobre folhas amadurecidas pela vontade, que foram caindo das árvores que guardam os raios de sol que se debruçam sobre as mesas que lhe tomam a cor, ao sabor das pessoas e pensamentos que nelas se sentam enquanto as nuvens escondem os deuses furtivos que da terra se elevam para afastar a chuva do horizonte.

Da pequena cascata do jardim, pequenas gotas de tempo saltam, para na timidez do silêncio acorrerem às mãos num abraço que um beijo na testa da memória deixa cair no peito como um pequeno cristal de neve.

Começou a nevar...

sexta-feira, setembro 26, 2008

Aquele abraço ...

A boca guarda o silêncio enquanto a nostalgia atiça o pensamento que a lembrança faz dar à costa em marés de pequenas vagas a que lágrimas invisíveis emprestam de quando em vez o sabor salino da saudade que o Outono prometeu lavar nas margens do tempo.

Embora o vento suão abafe tudo e todos numa nuvem quente de calor, o frio faz-se sentir no entanto, como facadas no pano estendido que cobre o cenário em redor cor de mel.

Como faz frio, meu Deus. Os braços vão-se arqueando em redor do corpo que treme ao ritmo do cerrar dos dentes e os olhos fecham-se na esperança da implosão do mundo para que de tudo reste um ponto apenas no espaço entre aqui e o além.

Apenas queria um abraço de alguém. Aquele abraço ...
Como faz frio às vezes, meu Deus, sempre que o Inverno teima em voltar ...

quinta-feira, setembro 25, 2008

Em nome da verdade

Há algum tempo, Helena Silva, a mãe do "menino azul" foi alvo de processo em tribunal, movido por uma empresa de limpezas, que doou dinheiro para os tratamentos do filho, por esta «não provar que o dinheiro que recebeu» tinha sido empregue na doença do filho.
Supostamente isto baseou-se no depoimento de um ex-colaborador da mãe, de nome Paulo Leal, que a acusava de ser «uma mulher capaz de grandes vigarices». Paulo Leal acusou Helena Silva de não gastar os fundos que recebeu nos medicamentos do filho e de esconder o verdadeiro valor dos subsídios que recebia. Chegou mesmo a acusá-la de nunca ter viajado para os Estados Unidos, país onde Helena Silva disse ter estado com o filho internado. Aparentemente, Helena Silva disse que não tinha provas das despesas com o filho nem provas da viagem aos Estados Unidos porque Paulo Leal as tinha roubado.

Agora, Paulo Leal confessa que todas as acusações que proferiu contra a mãe do ‘menino azul’ são «falsas» e que visaram «denegrir» a sua imagem a pedido de uma empresa de limpezas que tem um litígio com Helena Silva e que lhe terá alegadamente pago 25 mil euros pelas acusações. Paulo Leal, diz que foi «fraco» e que agiu «por dinheiro». Diz que recebeu 25 mil euros em troca de documentos que tirou à mãe do ‘menino azul’ para esta não os poder apresentar e defender-se das acusações de não empregar os subsídios em cuidados clínicos. Roubou-lhe ainda o passaporte, pois era a única prova de que tinha estado nos Estados Unidos.

Paulo Leal afirma-se «arrependido» e diz que prefere ir novamente preso do que viver com «o peso na consciência» de ter estragado a vida «à melhor mãe que Portugal tem». «Pensei várias vezes em suicidar-me. Prefiro morrer a ter de viver com o remorso de fazer isto ao Emanuel», afirma.

Helena Silva recebeu a notícia do arrendimento de Paulo Leal com um choro profundo. «Ele vendeu-me», diz. Segundo conta, as acusações reproduzidas na primeira página de um jornal estragaram-lhe a vida. «O povo tentou matar-me. Cuspiram-me na cara. Rasgaram-me os cheques do correio e fiquei sem dinheiro para comer. O Emanuel só comeu com a ajuda de vizinhos».

A mãe do ‘menino azul’ conta que ninguém quis saber se as acusações eram verdade ou mentira. «Ninguém se preocupou com o meu filho, que ia tendo um ataque do coração, quando fui perseguida e pensei que me matavam». Helena Silva não entende as razões de Paulo Leal, em quem confiava e passava documentos para este digitalizar. «Era uma pessoa de confiança, que me ajudava a organizar exposições e a ter os documentos em ordem».

A mãe do ‘menino azul’ garante que nunca usou indevidamente um único cêntimo recebido para o Emanuel e afirma que é hoje uma «outra mulher», «sem força para tirar os olhos do chão».

De facto, quantos de nós já apontámos o dedo para denegrir a imagem de alguém? E quantos de nós já sentimos na boca a amargura da injustiça da calúnia ?
Que nessas alturas não faltem as forças para olhar em frente, sobretudo diante dos que acusam e caluniam. Mesmo que os olhos chorem, mesmo que o silêncio seja a defesa dos que nada têm a dizer a quem já sabe o que teria a ouvir.

Recordo-me que em tempos, uma outra "Helena Silva", solitária acolheu nos braços e afagou no peito o mesmo homem que durante a sua vida a caluniou, quando nos seus últimos momentos, moribundo lhe pedia desculpa por tudo o que lhe havia feito.

Diz-se que errar é humano e perdoar é divino. Mas afinal somos todos humanos e dificilmente somos capazes de esquecer para poder perdoar de facto.

Muitas são as vezes que mesmo cruxificados qual Cristo pelos que nos açoitam na consciência da maldade, ora nos tornamos leões perante as agruras da vida, ora somos cordeiros perante a verdade que acaba por vir ao de cima, mesmo quando chega tarde demais.

O crime não (des)compensa ...

Valentim Loureiro acusado de burla qualificada
O processo envolve Valentim Loureiro e o filho Jorge, dois vereadores da Câmara de Gondomar, dois administradores da STCP e mais cinco arguidos. Em três dias, quatro dos arguidos terão lucrado três milhões de euros.

«A Polícia Judiciária investigou o negócio da venda da Quinta do Ambrósio, comprada a uma viúva e vendida à STCP (Transportes Colectivos do Porto) com um lucro de três milhões de euros. Valentim Loureiro é acusado dos crimes de burla qualificada, prevaricação e participação económica em negócio. É ainda suspeito de instigar um crime de administração danosa.
De acordo com a acusação do Ministério Público, a quinta foi comprada por Valentim Loureiro e José Luís Olveira, respectivamente presidente e vice-presidente da Câmara de Gondomar, por um milhão de euros. A vendedora, Ludovina Cunha, julgava estar a vender o terreno à Câmara de Gondomar e, sempre de acordo com a acusação, Valentim convenceu a senhora, uma viúva de 80 anos e a filha, de que o terreno estava em reserva agrícola e pouco valia.
Laureano Gonçalves, advogado e ex-presidente do Conselho de Arbitragem da Federação Portuguesa de Futebol, acabou como proprietário do terreno, através de uma off-shore.
A 15 de Março de 2001, Ludvina vendeu o terreno por um milhão de euros. Seis dias depois, o mesmo terreno, licenciado pela Câmara, foi vendido à STCP por quatro milhões de euros. O lucro terá sido distribuido entre Valentim, o filho Jorge, Laureano Gonçalves e José Luís Oliveira.
O terreno destinava-se à construção de uma estação de recolha de autocarros e está abandonado. O procurador responsável pela acusação é Carlos Teixeira, o mesmo que acusou Valentim no processo 'Apito Dourado'.»

Os romanos usavam as galeras, Marquês de Pombal usava a forca, na China usam uma bala na nuca, no Irão cortam-se as mãos ou a cabeça, nos Estados Unidos usam-se a cadeira eléctrica ou a injecção letal e Chaka Zulu usava um pau ...

Hoje em Portugal, por tudo isto, até se corre o risco de ser figura notável de um partido político, presidente da câmara, presidente de um clube da 1ª divisão, consúl honorário de um país africano, presidente da liga de futebol e sabe-se lá que mais.

Ninguém tem o direito de tirar a vida a ninguém, mas vá lá ... fazer justiça até pode ser mais útil que o sustento impune dos criminosos.

quarta-feira, setembro 10, 2008

O reflexo do Sol

A pequena Yamka corria pelos vales que a primavera todos os anos salpicava com as cores que o arco-íris oferecia diariamente no engalanar das cascatas por onde ribeiros e riachos cantavam em coro com o piar do condor e o uivo do coiote nas encostas sobranceiras ao vale, onde ervas e flores se curvavam gentilmente aos pequenos mocassins de pele de veado que albergavam os pezitos travessos nas corridas.

O regresso a casa fazia-se com o hábito do reencontro familiar a que uma mão cheia de flores tornava mais solene a ocasião que o aconchego materno enfeitava com expressões emprestadas de surpresa pela beleza que se repetia nos ramos improvisados que as pequenas mãozitas estendiam entre a excitação do sorriso acompanhado por dois olhos abertos como duas pequenas luas cheias brilhando numa noite transformada em dias soalheiros.

Entre todas as flores, Yamka incluía sempre um girassol, que fora desde sempre a sua flor preferida e que por isso, fazia questão a de escolher entre as restantes para que o pai lha prendesse nas longas tranças escuras que lhe descaíam por sobre os ombros.

- Mamã, porque é que o girassol é igual ao sol ? Perguntou a pequenina, no reparo insuspeito e inocente sobre o olhar atento da descoberta de tudo o que o rodeia.
- Sabes, quando o Grande Espírito criou o mundo e colocou o sol no céu, reparou que uma pequena flor se apaixonou pelo sol, olhando continuamente para ele. Com o passar dos dias a flor foi crescendo mas continuava a olhar o céu em busca do sol que amava. De tanto o olhar, a pequena flor foi-se transformando, até que por amor, se tornou como ele e desde então essa flor ficou conhecida com a forma e o nome do girassol.

Saciada com a explicação, a pequena Yamka devolveu a atenção á sua paixão pelas flores, em particular pelos girassóis a que queria mais que às outras. À sua semelhança, também ela foi crescendo ao ritmo da cadência das primaveras e os ramos de flores que então colhia, também iam sendo maiores e quando olhou o lençol de água do pequeno regato que atravessava a aldeia, reparou que os longos cabelos escuros que herdara da mãe à semelhança das demais que caracterizavam os da sua tribo, haviam dado lugar a pequenos caracóis dourados que lhe decoravam a face, fazendo dela, mais uma entre as flores que segurava na mão.

Sobre elas, o sol estendia-se qual pai ao abraçar os filhos no aconchego dos que lhe são iguais.

quinta-feira, agosto 14, 2008

Passos sobre o tempo

Levantou-se cedo como se preparasse para receber antes de todos o sol que já se anunciava em tons tímidos sobre a copa das árvores em redor. Saiu e de braços abertos encheu-se da aurora fresca que sorvia lentamente no dejejuar do sono que deixara para trás num pequeno quarto da casa da eira.
Não orou qualquer oração matinal nem os templos que conhecia tinham a forma de catedrais. Não o sabia fazer e os deuses a quem seria capaz de servir repartiam-se entre os que amava, entre os que via e os que recordava cá e no além.

Fez do seu, um dia levado sobre cumes dos montes que chegavam até onde a vista alcançava e tentou abraçá-los numa corrida que só o desejo de chegar longe permitia. Depois, estendeu a alma, qual toalha alva de linho que tudo cobria como longos cabelos de seda sobre um corpo de mulher que dava forma ao horizonte.

Correu. Lançou-se entre caminhos ladeados pela fandinga da caruma dos pinheiros, que ora decoravam as artérias dos vales e vielas, ora se encavalitavam sobre as encostas dos montes, como se buscasse a fonte onde iria beber com o cálice que lhe era mais sagrado.
Correu até onde a vontade lhe achou de bem feita melhor quedar-se entre fragas que davam alma e pena a pequenos cursos de água que mais à frente se juntavam a outros, qual procissão devota que dava corpo ao rio, entre redemoinhos de espuma branca que lhe julgavam o nome.

Levantou-se e seguiu, deixando que os passos dessem eco ao caminhar sobre as calçadas das ruelas onde colheu de resgate uma rosa que haveria de depositar onde julgasse encontrar altar num retábulo santo, onde recordações se achassem e se fizessem antes e agora.

Haveria de voltar só, como havia ido, para se encontrar consigo próprio em momentos para que juntasse num lugar só o corpo e o pensamento, como se buscasse cura para algo que por maleita desejaria mais sofrer.

Já à noite haveria de adormecer para completar além na noite o que o dia por cá já lhe havia pedido. Fora também seu, o seu próprio dia.

terça-feira, agosto 12, 2008

Venite Adoremus

Abriram-se as portas da velha escola da aldeia, relembrando tempos passados onde o eco dos risos das crianças se fazem ouvir agora de novo, misturados com o burburinho de vozes adultas como se repente os fantasmas do passado voltassem à vida na mesma sala onde já haviam sido alunos e aprendizes numa vida que os ensinou a crescer em conjunto.

As crianças correm sobre o ripado da sala que com eles lança o som do sapateado das corridas e brincadeiras, a que o antigo quadro de lousa pendurado na parede dianteira, assiste com um ar indiferente e severo.
No pátio da entrada, numa grelha fumegante, sardinhas e bifanas perfilam-se numa parada onde apenas o crepitar das brasas se faz ouvir, tornando-se o centro das atenções dos homens dispostos em círculo numa ronda de recordações a que paródias e piadas de circunstância acirram sob o olhar desafiador das mulheres que se atiram aos afazeres da cozinha.

As mesas são corridas e as pessoas dispõem-se nas dezenas, tantas quantas os pontos cardeais que ali apontam numa mesma ocasião já conhecida de antes, quando a festa da aldeia fizera esperar a qualquer momento o nascimento mais desejado de quem, alguns dias e cinco anos depois, ali o festejava agora com eles.
Pratos e talheres esgueiravam-se por entre os dedos de mãos a que a vida havia dado experiência no trabalho mas também nas lides do convívio que a ocasião reclamava, numa homenagem simbólica que do pai e mãe chegava ao filho, num prazer redobrado pela gratidão destes pelos demais.

Na cabeceira da sala, os avós maternos desenhavam um sorriso no inesperado da ocasião que lhes era ofertada também na presença que lhes fora imposta pela ocasião que a vida e o tempo fazem ser mais rara e mais cara à memória de quem lhes quer o mesmo bem que neles igual reconhece na vontade.

Terminava o dia entre o cântico de aniversário e o sopro que derrubava a chama das velas, sem que por isso se apagasse a doce recordação da presença dos convidados.

Fora do agrado dos Deuses e santos que haviam estado ali naquele dia, que fora de felicidade recordada todos os anos na mesma data.

Parabéns meu adorado filho pelo teu quinto aniversário, num bem hajas sentio a que junto a amizade das gentes da terra dos avós maternos e lugares limítrofes numa homenagem franca a que humildemente me inclino no agradecimento.

Colocam os deuses a felicidade nos meus olhos quando neles se reflecte a visão dos teus.

segunda-feira, agosto 11, 2008

No passar dos tempos

O caminho entre o “cabeço” e a “selada” fizera-o calmo e tranquilo pelo serpenteado da estrada principal, qual manto de retalhos, dividida agora entre pedaços de empedrado certo e regular e pequenas manchas de alcatrão recente sobre um manto extenso do alcatroado antigo. Eram como inscrições de uma história antiga da vida da aldeia, encadernada por muros de xisto encimados aqui e além por algumas latadas e a que se encostavam oportunamente no caminho, alguns chafarizes onde gentes e gado haviam saciado a sede e a vida em tempos de outrora.

A chegada à “venda” onde todos se reuniam em tertúlias do dia-a-dia, entre conversas soltas e troca de saberes sobre pessoas e coisas, concedera por momentos e espaço, a misericórdia do seu telemóvel voltar à vida numa precaridade de rede que ameaçava desvanecer-se a qualquer instante.
Renascido, qual Fénix, o pequeno aparelho apressava-se avidamente a dar nota de vida, entre mensagens recebidas e a oportunidade quase única de comunicar com o mundo a que uma telepatia incompreendida dava sentido ao tilintar que anunciava a chegada de uma chamada.

O reconhecimento do número pintara-lhe um sorriso nos lábios, ainda antes de atender, no agrado adivinhado da conversa, que desta o faria ouvir mais do que sabia responder além do entreabrir dos lábios donde as palavras não eram capazes de sair em termos e os olhos denunciavam o que as palavras não dizem, através de pequenas gotas mudas e salgadas que escorriam pelas fazes crestadas pelo sol que a custo as procurava iluminar tanto quanto o que então lhe era dito.
O final da conversa exigia-lhe um esforço de resposta, a que o silêncio do ouvir atento não faria justiça ao diálogo, e entre palavras e o remate que lhe levava o fôlego contido na emoção, a conversa terminava-a numa frase simples “- Eu também gosto muito de vocês e nunca esquecerei o que já fizeram por mim”.

O que dissera estaria sempre muito aquém do que lhe era o sentir desde há muito, num acumular constante de agradecimento, admiração e amizade.
Pegou no que ouvira, juntou-lhe a cor do sol, o negro manchado do caminho, o cinzento pardo dos muros e o verde das latadas e das eiras e com eles fotografou o momento numa memória que não haveria de esquecer. Era um daqueles momentos que a oportunidade do momento serve para ouvir os que nos que querem e fazem bem, recordando uma frase inscrita numa placa colocada cerimonialmente na capela da aldeia, onde se lê: “Deus faça bem a quem bem faz”.
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Nota: Este post foi inspirado nos gestos recorrentes do Vítor e da Luci, cuja postura e amizade são objecto da mais profunda admiração. Há de facto gente assim, que nos decora a vida no melhor que ela nos dá e a quem presto sentida homenagem numa dívida impagável.

terça-feira, julho 29, 2008

Em nome de Deus ...

“Pai nosso que estás no céu, …”. A cabeça ligeiramente tombada sobre as mãos de palmas unidas a traçar de prumo o limite da face. Era assim que começava todos os dias, traçando com devoção as linhas com que pretendia escrever a própria vida, como extensões improvisadas do livro sagrado que empunhava junto ao peito, sempre que rezava.

Saiu apressadamente pelo atraso da hora desejada, despedindo-se da casa benzendo-se diante do crucifixo que lhe guardava a porta, enquanto se lançava no caminho da igreja onde outras como ela já se viam mais adiantadas. Com o passo apressado de as igualar na chegada e na devoção, foi submergindo de cor os dedos na carteira de onde sacou as moedas que já guardara nos dias anteriores para distribuir pelos pedintes, quantos o átrio da entrada acolhesse e as moedas chegassem, com a excepção de uma, que de maior valor guardava para colocar num gesto conhecido na caixa dos pobres que fazia uma sentinela de silêncio na parede junto da porta do templo.

O momento da comunhão fizera-o sentido e em silêncio, enquanto a hóstia lhe sagrava a boca e o espírito que sentia mais leve e confortado desde a última ida ao confessionário e do quanto havia rezado desde então, não só por si, mas por todos quantos ainda gostava e lhe eram de boa recordação, de preferência tão crentes como ela e dos mesmos bons costumes.

Finda a celebração, conversas e diálogos tomaram o lugar do sermão da missa no tecido humano que cobria o átrio, quais células que ora se multiplicavam, ora diminuíam ao sabor das horas que eram e do tempo que ia faltando e do qual apenas iam restando as mais devotas que sobre os que iam, lançavam o parecer, fosse da pressa ou fosse do silêncio ou da discrição com que as ignoraram na chegada e agora na partida.
Tomou como as outras, a lista contra o aborto e o uso de preservativos que haveria de fazer assinar por filhos, sobrinhos e quantos se pudesse fazer ouvir, fora pela salvação das almas dos mesmos fora pela devoção à causa e á fé que queria clara e pública, que por ela não apresentaria menos assinaturas que as demais que com ela partilhavam a crença da salvação.

Chegada a casa, o cansaço cobrava-lhe as forças e a família a preocupação, embora já tivesse mais tempo para o descanso, uma vez que deixara de visitar a amiga ao hospital, desde que ela lhe dissera para que não interferisse na vida pessoal dela. Assim ocuparia a tarde com outras preocupações que lhe eram mais caras e a que se dedicaria na melhor das vontades.

Pegou no telefone e discou o número de fiscada. O diálogo era triste das avessas conjugais que ela entendia e julgava do alto da experiência que a vida lhe havia concedido na sapiência. “Olha, deixa-me que te diga, tu deves é olhar pela tua vida e não te preocupes com ele, …”. As recomendações saiam-lhe fáceis e quase evidentes, fosse pelo desejo ou pela lonjura pessoal das consequências delas. As investidas aguçavam-lhe o gosto e depressa aquele aparelho mágico lhe permitiria chegar a quem mais desejava.

Assim, em pouco tempo sugestões e conselhos se apressavam a condenar, extirpar e a julgar, todos quantos neles ela não visse outra que não fosse a sua vontade ou ideia, quais malditos que da condição de bons, depressa eram queimados na fogueira da Inquisição que ela concebera unilateral e piamente.
Inconscientes eram todos os que não temiam ao seu Deus, de maus princípios todos os que não a ouviam ou permitiam a intromissão e amaldiçoados todos os que não lhe davam a alma a guardar. Todo o tempo que reconhecia, dedicava-o ao bem, para que todos eles, assim como prostitutas, divorciados, comunistas, os que não lhe falavam ou dela sentiam agravo e outros que ela não conhecia bem mas que sabia serem inimigos da sua fé, viessem um dia a ser como ela e lhe reconhecessem a piedade com que se santificava diariamente em terços e novenas que lhe atestavam a crença.

À noite, a última oração rematava-lhe o dia sob os olhares cúmplices das fotos dos que lhe enfeitavam a presumida magnanimidade do bem querer e que por isso tinham o privilégio de marcar páginas no livro sagrado, na vã esperança de se juntarem á devoção.

Agora sim, sentia-se mais leve e pronta a adormecer, na tranquilidade de ter feito justiça e de que santos e apóstolos lhe louvariam os actos antes de um Deus que era mais seu que dos outros a quem não via tão piedosos. Podia assim, sonhar apor-se de livre vontade um par de asas que ela sentia merecidas mas que o peso da consciência não lhe permitiria voar aos olhos dos outros que não eram como ela na beatitude amaldiçoada.

quarta-feira, julho 23, 2008

Odores em grãos de areia

Ainda a noite não se despediu do dia e já o ar quente começa a tomar o lugar da aragem húmida que me fez cobrir com a manta multicolor com que me abrigo.
Dentro da tenda o dia toma tons pardos enquanto o ar ainda é respirável, tingido pelo odor seco do pão quente acabado de cozer na chapa que vou tragando em pedaços dobrados pelos dedos calejados empoeirados pelo tempo e pelo pó que tudo cobre numa presença incontornável.
As últimas cabras a serem ordenhadas espalham alguns balidos numa saudação ao novo dia, a que me associo ao ritmo de pequenos goles com que sorvo o leite matinal ainda morno da ordenha.

Chega a hora de levar o rebanho a pastar, numa rotina diária já conhecida, num passeio pelos caminhos adivinhados num terreno de areia polvilhada por pequenas pedras de arenito da mesma cor castanho-claro, quais pepitas de um valor que a abundância e o incómodo de caminhar sobre elas faz desdenhar.
Os escassos arbustos emitem um ruído semelhante ao crepitar do óleo quente, quando sujeitos à persistência do mastigar das cabras, que indiferentes às arestas afiadas das folhas quase secas, as devoram resignadas á imposição do apetite.

Uma caravana de camelos surge no horizonte quase invisível pela cumplicidade das cores com o tom doirado das dunas, denunciada pela fila de sombras ondulantes, vacilando ao ritmo paciente dos passos que tomam cadência em baques que ganham um crescente volume surdo à medida que se aproximam.
“Salam aleikoum” saúdam os homens num gesto de cortesia, cadenciado pela mão direita que deslocam entre o peito, a boca e a testa enquanto a mão esquerda segura a montada pelas rédeas de um mesmo couro com que foram feitas as sandálias que lhes calçam os pés. Estão cobertos de panos de um azul forte, contrastando com a alvura branca do pano que lhes cobre a cabeça, deixando uma pequena abertura para os olhos negros cor de azeviche, por onde se anunciam os rostos crestados por um sol que lhes impôs na pele o mesmo tom castanho das tâmaras, que lhes servem de alimento.
O calor emanado pelos bafos da cáfila de camelos mistura-se com o ar quente e seco que tudo envolve e nos entra no peito como se nos aconchegasse interiormente, qual mão invisível, aquecida nas mesmas brasas onde uma pequena chaleira emite o som doce do murmurejar da água onde deito um pequeno ramo seco de chá de menta, a servir em gestos simples de um respeito mudo, sobre o açúcar que o espera impaciente em pequenos copos de vidro canelado onde a areia e os anos deixaram marcas baças no polir das arestas.
A conversa é calma e em voz amena, quase cerimonial, num idioma de frases de tonalidade quase tão seca como o ar que entra pelas gargantas, que o chá quente ilude em sensações de frescura pelo sabor mentolado da infusão. Esta é bebida a pequenos goles delicados em gestos repetidos com o auxílio das mãos que a conduzem à boca pelos dedos indicadores e polegares já habituados ao vidro quente que as palmas das mãos procuram proteger dos grãos de areia embalados em suspiros furtivos da aragem.
As discussões e os assuntos são tema de numa precursão melodiosa de um gargarejar ritmado, apenas entrecortado pelo borbulhar fino da chicha onde o tabaco misturado de ervas, arde sob as ordens de uma pequena brasa retirada à lareira com a ajuda de dois pequenos ramos, desempenhando de improviso o papel de tenaz nas mãos experientes de um berbere de rosto afilado e expressão severa.

Antes que a noite desça de novo, inclino-me sobre a esteira no alpendre da tenda e demoro o olhar sobre a paisagem que vai tomando tons de âmbar enquanto o céu muda para um tom anilado que a lua quando nascer vai contrariar em reflexos de esmeralda.

Fecho os olhos e aspiro confortado a novidade da frescura da noite enquanto penso que não era capaz de viver noutro lugar, sem que deste sentisse uma castigadora saudade.

quinta-feira, julho 17, 2008

Os três livros da vida


Hyram era um jovem talentoso cuja sina o fizera atravessar a vida, quer por encruzilhadas, quer por caminhos mais ou menos agrestes. Quisera o destino que encontrasse abrigo e aconchego num templo local após ter perdido quase toda a família devido a epidemia que assolara a região.
Frequentemente a saudade dos seus levava-o a sentar-se olhando o horizonte, fazendo do céu e da terra companheiros de uma conversa muda que só ele ouvia através do silêncio que era a língua base de tantos diálogos que tinha consigo próprio.

Foi num desses momentos que um dos sacerdotes se aproximou de Hyram, perguntando-lhe em que pensava.
- Em que pensas meu filho ? Questionou o sacerdote, ajeitando a túnica branca que fazia coro com os cabelos da mesma cor que lhe decoravam a cabeça, como uma aura que o sorriso sempre presente ajudava na presença e no aconchego que as mãos traduziam em gestos brandos enquanto pousavam nos ombros do jovem.

- Em nada em especial. Lembro-me da minha terra e da minha família e amigos. Lembro-me do que estou aqui a aprender e penso no que poderei vir a fazer na vida. Penso na solidão fria que sinto à noite e no calor dos dias em que aqui estou com outros como eu. Penso no que não tenho e quero ter e penso no que tenho e não procurei.

- Sabes meu filho, a vida é feita de três livros, todos eles com capas iguais. O primeiro tem apenas as imagens do passado que se tornam nas recordações que guardas contigo. O segundo descreve o presente e o modo como vais vivendo cada um dos teus dias e o terceiro tem informações sobre o que será a tua vida no futuro. Em cada momento deverás saber qual deles queres ler.

- E como vou saber qual devo ler ? Questionou Hyram ao sacerdote ancião, com o olhar admirado que os olhos negros dirigiam numa atenção que denunciava a busca do conhecimento daquele jovem sedento do saber, qual andorinha em busca de água e terra com que haveria de construir o ninho que formava a vida.

- Sabes, quando és jovem, as recordações ainda são poucas e quase sempre são ensinamentos importantes a recordar e deve ser esse o livro a ler. A meio da vida deves viver intensamente sobretudo o dia a dia, que é sempre curto, recordando apenas as boas recordações entre as tantas que te fazem o conhecimento e não descurando todo o futuro que ainda te aguarda. Quando já fores idoso, vive sobretudo a vida que te resta no futuro que entretanto se tornou mais pequeno, procurando saborear a vida como o mais suculento e maduro dos frutos sagrados.

- Entendi. Mas como vou identificar qual o livro que devo escolher ao longo da vida ?

- É fácil meu filho, dos três livros, deves escolher o que tiver menos folhas para ler em cada fase da tua vida.

sexta-feira, julho 11, 2008

A forma da "saudade"

Achmed era conhecido em toda a região pela arte de esculpir na pedra, tendo ganho fama pela habilidade e perícia nessa arte, que aprendera em tempos quando ainda pequeno vivia com os pais. Contudo, nada do que conhecera o ajudava agora para satisfazer o pedido do Sheikh que lhe encomendara uma escultura que lhe representasse a saudade. Há dias que procurava em vão a inspiração nos pequenos modelos feitos de areia húmida que depois de secos conservavam precariamente a forma original.

Desesperado sentou-se na crista da duna olhando o sol enquanto este de punha. O deserto era imenso e era ali que gostava de recolher-se quando a vida não lhe era de feição. Sentava-se normalmente a espreguiçar o olhar pelo horizonte, como se esperasse que algo de novo surgisse do nada.
Tinha nas suas mãos um dos vários modelos de areia que preparara, mas sem que o agrado lhe desse a aprovação que gostaria de se consentir a si mesmo, se achasse a obra digna da sua arte. Estava triste. Como desejava que os seus pais ali estivessem. Eles que tanto lhe tinham ensinado na arte e na vida, não lhe tinham afinal, ensinado tudo, e ali estava ele sem conseguir traduzir o que também o seu coração sentia.

Dos olhos, pequenas gotas de água rolavam pelas faces trigueiras, caindo sobre a pequena escultura de areia que as mãos seguravam e que a pouco e pouco se ia desfazendo ao ritmo de um choro calado.
Achmed olhou para as mãos que antes seguravam uma forma que esculpira à sua semelhança e que agora não era mais que um pequeno monte disforme de areia que procurava evadir-se por entre os dedos para voltar à sua forma primordial.
Tinha afinal, diante de si e nas suas mãos, a mais fiel representação da saudade que também sentira e que a pouco e pouco lhe ia desfazendo a alma e a memória.

quarta-feira, junho 25, 2008

O livro de Maryam


Maryam era uma mulher ainda jovem, a quem a vida remetera para uma existência calma e serena a quem os demais que com ela partilhavam a condição de berbere, atribuíam um estranho dom de acalmar homens e animais. Os gestos simples e as palavras de conforto condimentadas por um bom senso genuíno, levavam amiúde as gentes a pedirem-lhe conselho e a buscar conforto nos momentos difíceis.

Habitualmente as noites eram para Maryam, calmas e o momento diário de repouso, mas aquela em particular, fora agitada por um sonho que a tocara particularmente. Resolveu por isso, falar com a senhora mais idosa da aldeia a quem queria e tratava como mãe e nela reconhecia a sabedoria dos anos já vividos.

- Olá minha filha. Que tens ? Que te trouxe agitado o olhar ? Perguntou a idosa adivinhando a inquietude to traçado rápido dos passos que a traziam.
- Assim é de facto, minha mãe. Esta noite tive um sonho estranho. Apesar de não me lembrar de já ter sonhado aquilo antes, é como se não me fosse totalmente desconhecido. Sonhei que estava num templo antigo, junto de um homem jovem como eu. Ambos éramos pobres e falávamos às gentes como se lhes estivéssemos a ensinar algo. Estávamos vestidos com túnicas cinzentas e calçados com sandálias de pele de cabra. Será que quer dizer algo ?
- Minha filha, a vida ensina-nos que ninguém é suficientemente rico para comprar toda a sabedoria do mundo, nem ninguém é tão pobre que nada tenha para ensinar. Nesta vida, todos somos alunos e mestres e ninguém aprende sozinho, mesmo que não veja o professor que está ao lado.

Satisfeita com a resposta, Maryam voltou às diárias que diariamente dela dependiam no arranjo da casa e no amanho da pequena horta que ladeava uma pequena casa de adobe pintado de branco, encimada por dois troncos que sobressaíam na fachada, suportando um telhado de folhas de palmeira entrelaçadas.
Nessa noite, Maryam voltaria a sonhar e mais uma vez procurou na idosa, uma interpretação, fosse para o que sonhara, fosse para a inquietação que passara a sentir por isso.

- Mãe, voltei a sonhar sem que entenda o porquê. Desta vez fui tomada da casa de meus pais por um príncipe que me carregou no seu cavalo e me levou para o palácio e me fez sua mulher. Eu era pobre e ele vestia de manto negro a condizer com a barba hirsuta que lhe dava um ar austero, guerreiro e temerário no brandir da espada que trazia à cintura. Contudo era gentil comigo e a protecção dos seus braços fazia-me sentir desejada e amada.
- Minha filha, a vida ensina-nos que ninguém é suficientemente forte para não precisar dos outros, nem ninguém é demasiado fraco para não ser a companhia de alguém. A vida é uma luta constante em que todos os dias a riqueza dos homens se resume à sua capacidade de viver com os outros e de amar alguém.

À semelhança do dia anterior, Maryam ficou a meditar naquelas palavras que a terem algum sentido, assim o futuro decerto lho haveria de mostrar.
No dia seguinte, apercebeu-se que a noite se passara como as anteriores e por isso o caminho junto da idosa lhe ocupou o lugar a preocupação do início da jornada.

- Mãe, mais uma vez sonhei com o mesmo homem dos sonhos anteriores. Desta vez, eu era menina e ele um monge num mosteiro distante. Todos os dias eu e outras crianças como eu, íamos com um cesto de vime, buscar à horta que ele cuidava, o alimento que nos aliviava da fome em casa. Via-o sorrir com a ternura da caridade e de barba grisalha à minha passagem, como se aqueles alimentos não fossem dados ou recebidos mas partilhados numa refeição de uma grande família onde todos se podem servir e matar a fome.
- Minha filha, a vida ensina-nos que ninguém é tão voraz que consiga comer todo o pão do mundo, nem ninguém está tão saciado que não possa comer o mais pequeno pedaço de pão. Uma migalha mesmo que pequena, quando é dividida e partilhada com alguém consegue sempre transformar-se em duas.

Maryam ouvira atentamente, esperando pela noite seguinte para ver que de novo a noite lhe reservava.
No dia seguinte, quando à tenda que servia de casa à idosa, Maryam deparou-se com um vazio, como se aquela tivesse partido e seguido o destino já conhecido dos nómadas.

Sobre uma pequena esteira estendida no chão, estava a pequena bilha de barro que Maryam costumava levar com água fresca, pousada sobre um velho livro, ao lado do qual restavam igualmente uma pequena caixa com incenso e um pequeno prato com tâmaras.
Embora compreendesse a partida da idosa, sentia-se mais só, a que juntou a resignação com que tomou nas mãos as pequenas lembranças que encontrou naquela esteira já antiga e meia desfeita pelo tempo.
Maryam não voltara a sonhar e os dias retomaram naturalmente a cadência já conhecida dos anos anteriores, sempre iguais, no espaço e no tempo, quais templos num sacerdócio constante à vida que se desenrola na calmaria daquela aridez desértica.
Subitamente todo aquele silêncio acabou por ser interrompido por leves pancadas na porta, com cadência e toque que denunciavam, ou cuidado no trato ou cansaço de alguém em fim de viagem.
Maryam, abriu a porta.

Encontrou sentado na soleira, um homem visivelmente desgastado pelo tempo e por uma longa caminhada que as vestes cinzentas e as sandálias de pele de cabra já gastas denunciavam. Os olhos eram negros e penetrantes e a barba grisalha e rebelde juntavam-se numa feição grave e decidida, que os lábios contrariavam num sorriso meigo no beijo das mãos na saudação tradicional que à boca lhe chegavam do coração. Trazia consigo parcos haveres que guardava num velho cesto de vime, enrolados num velho pano escuro que o abraçava, num mesmo tom de pó que tudo cobria naquele homem.

Maryam, sem hesitar, serviu-o da água com a pequena bilha, colocando diante também, o prato com as tâmaras.
Já saciado, o homem sorriu recomposto, enquanto Maryam envergonhadamente lhe estendeu o velho livro que a idosa lhe deixara, perguntando-lhe se lhe podia dizer que livro era aquele e o que dizia, já que ela não sabia ler, na esperança de que ele lho pudesse descobrir.
O homem tomou o livro das mãos de Maryam e quase sem olhar, tomando-as também nas suas, respondeu-lhe olhando-a fixamente nos olhos:

- É o livro da tua vida. Na capa tem o teu nome e no interior, a metade final das folhas está em branco para que nelas escrevas o que aprendeste com a metade inicial.
- Mas senhor, eu não aprendi a ler nem a escrever.
- Querida Maryam, nem todos os livros e memórias se escrevem com letras, nem o coração dos homens se encontra escrito com elas.

segunda-feira, junho 16, 2008

Verdes anos

Um vulto negro quase imóvel sentou-se, aninhado como quase sempre, junto da lareira que lhe devolvia o calor que a vida lhe negara.
Perto, uma criança pequena e de olhos expressivos, onde o mundo cabe numa mão cheia de olhar, brincava ao sabor da descoberta que as pequenas mãozitas dedilhavam em tudo o que alcançavam.
De repente os olhares encontraram-se e a pequenita, vestida de um sorriso com que a idosa se aquecia de ver, chegou-se a ela com os braços estendidos, agarrando com as dela, as mãos que a recebiam como a dádiva mais desejada dos deuses.
As mãos, essas, continuavam na descoberta, dividindo-se entre as que a agarravam e aquele rosto enrugado a que a lareira, por momentos, emprestava um reflexo doirado em tons que o sol procurava imitar durante o dia na jornada na eira, acompanhado no matiz pelas espigas de milho que o vento procurava embalar ao de leve. De dedo estendido, guardado pelo olhar admirado, procurava acompanhar os pequenos ribeiros inscritos nas mãos e nas faces, como uma mensagem escrita de símbolos que todos sabiam mais ler que julgar.

Quebrando o silêncio até então apenas interrompido pelo crepitar sorrateiro do madeiro na lareira, a idosa sorri, já esquecida da noite que chegara como a idade que lhe traçara o corpo.
- Vem, olha para as minhas mãos e vê nelas os versos que a vida no tempo escreveu.
- Olha para o meu rosto. Vê como o sol e a chuva escreveram nele o sorriso que agora vês.
- Olha para aquela maçaroca de milho que além está. Também ela já foi verde enquanto o tempo a fustigava e agora se oferece já seca com as folhas como a minha pele para a farinha que te alimenta.
- Vem, olha para mim e que vês tu ?

A pequenita atenta mais nas expressões que sentia que nas palavras que nem a custo achava entender, estendeu o braço numa carícia demorada que continuou num inclinar da cabecita coroada de pequenos caracóis claros para depositar um beijo nas mãos que a seguravam, num gesto que selou com um sorriso partilhado entre as duas.

sexta-feira, junho 13, 2008

Ilda: 13 de Junho de 1950 ... 16 de Outubro de 1955


Lá longe, bem alto, onde os anjos dormem;
Tão longe e tão alto, onde mão alguma se achega;
Descansam os que aos olhos do mundo se somem;
Libertos de memórias a que a vida se apega;
São agora mais que deuses, santos ou qualquer homem;
Foram antes tudo aquilo que a vida quer e a morte leva;
Foi aqui que cada um colheu o seu próprio fado;
Que ora uma guitarra geme na busca do desejado afago.


Descansa em Paz Profunda lá no Oriente eterno minha querida irmã, na companhia dos que mais amaste e te amaram e que agora estão contigo.

quarta-feira, junho 04, 2008

Não sou desse país

Abriu a janela da marquise e com esforço conseguiu prender a haste branca ao suporte das roldanas que a custo, procuravam esticar, elas a corda onde estendia a roupa e ela a resistência com que ia superando os dias que alimentava com o salário que venerava no emprego que a precaridade da vida lhe reservava.

Esticou-se o mais que poude para que a pequena bandeira pudesse destacar-se da roupa e ficasse bem visível naqual depositara o orgulho seu, que também era nacional. Gostava que a sua bandeira fosse grande, tão grande como todos os braços abertos, embora acabasse por comprar aquela, que embora mais pequena, fora acarinhada desde a loja dos chineses que a vendera apenas a um euro. Não era perfeita e até lhe disseram que parecia não estar bem feita, mas era a sua e que coisa, afinal era um bandeira portuguesa como as outras.
Era uma bandeira numa janela de uma marquise de uma casa portuguesa como tantos milhões de casas, famílias e bandeiras.

E eu, tenho uma casa, uma marquise com uma janela, mas não tem a bandeira desse país.
Afinal, nem desse nem de qualquer outro, onde o acaso me fizesse nascer para arremesso de quaisquer outros que nascessem mais além.
Afinal, eu também não quero ser desse país.
Quero ser ser de um país onde os homens sejm livres e iguais e se juntem à sombra das acácias num convívio fraterno. Quero ser de um país onde as cruzes simbolizem apenas os homens que cultivam rosas numa paz profunda.

Não quero um país que quer que a educação se pague por quem possa pagar;
Não quero um país que quer que a saúde se pague por quem possa pagar;
Não quero um país que converte a alimentar Pintos da Costa e Valentins Loureiros;
Não quero um país onde as ambulâncias parem por falta de médicos;
Não quero um país onde as pessoas morram por falta de assistência médica;
Não quero um país que abandona os seus idosos depois de se ter alimentado deles;
Não quero um país que exalta políticos envolvidos em escândalos;
Não quero um país que exalta ministros que proclamam leis que desprezam;
Não quero um país que exalta presidentes-cabides com magistraturas de influência;
Não quero um país complacente com pedófilos;
Não quero um país que cobra IVA a quem vende e não cobra e dá a quem não paga;
Não quero um país que colabora com o cartel do petróleo;
Não quero um país que fecha escolas e centro de saúde com base em estatísticas;
Não quero um país que não tem dinheiro para hospitais e escolas e compra submarinos;
Não quero um país com doentes a tratar em Cuba e Espanha por falta de recursos;
Não quero um país que acentua a diferença entre ricos e pobres;
Não quero um país complacente com a máfia de falsas igrejas;
Não quero um país plantado de estádios de futebol inúteis mas com falta de hospitais e escolas;
Não quero um país com canais de televisão mas sem cultura;
Não quero um país de fado, futebol e Fátima mas sem educação;
Não quero um país sem futuro e com um presente que vive apenas do passado;
Não quero um país de desigualdades instituídas;
Não quero um país com bandeiras tingidas por lágrimas de gente que sofre inocente enquanto, sem razão, alimenta os que conhecem as bandeiras mas não os homens que as carregam.
...
Não, não sou desse país. A minha pátria é o Mundo.