quinta-feira, janeiro 22, 2009

A manta de retalhos


Uma silhueta era moldada por um sol complacente em fim de tarde, camuflando uma cara alva onde o olhar fazia alvo na distância que uns olhos castanhos alcançavam no espaço além dos prados verdes que a encosta conduzia até aos penhascos para aí se debruçarem sobre um mar revolto, que o vento imitava no serpentear caprichoso dos cabelos dourados que compunham uma figura jovem de mulher, que o tempo teimava em conservar uma face de menina.

Aproximava-se a hora de Aghna deixar a casa onde fora criada para, qual ramo jovem e verdejante, lançar as suas próprias raízes no lugar onde o destino lhe guardara apego para aí florir. Agora mulher feita, iria lançar ao vento os frutos que a terra haveria de alimentar pelo seio maternal. Não distantes haviam passado os tempos em que ainda pequenina, se passeava entre campos e gentes num pequeno vestido branco às bolas coloridas que a mãe lhe havia feito em horas sagradas de veneração ao que lhe era mais belo, num culto a que não se ficava indiferente ao olhá-la.

Seguindo a tradição local, lhe deu a mãe para quando partisse, o que de melhor poderia ter, para que com isso, tivesse começo de vida arranjado e pronto, de acordo com as posses e feitio. Não havia recebido afinal o que as demais com a sua idade haviam esperado e recebido, de encontro às expectativas habituais. Não havia sido dinheiro, cortes de tecido fino ou jóias que lhe haviam dado por enxoval. Seria tal a pobreza que desconhecia na casa onde fora criada, que melhor legado não havia merecido ? Esta pergunta decorava-lhe triste o pensamento numa revolta igual ao mar que observava diante de si, que agora servida de fundo à conversa que recordava com sua mãe e que ainda lhe estava presente na recordação e aí haveria de ficar por muito tempo, tanto quanto tem a memória.

- Aghna. Fora assim simples, o chamamento naquele tom familiar que os ouvidos se habituaram a identificar na voz materna.

- Vem aqui filha. Há algo que te quero dar, pois é chegada a altura de o fazer.

Aghna aproximou-se lenta e expectante diante aquela mulher a quem aprendera a parecer-se no jeito e na forma, enquanto as duas se sentavam na beira da cama, debruçadas em coro sobre uma arca feita de carvalho. As duas entreolhavam-se cara a cara, qual reflexo uma da outra, distanciadas apenas pela idade, que o tempo marcara no escurecer dos cabelos, qual medida do ensinamento que a vida ia deixando no cabelos das duas, entre o dourado e um castanho que o futuro prometia pratear mais tarde.
Com mãos delicadas e num gesto cerimonial, quase ritual, a mãe ia abrindo a velha arca de carvalho, donde ia tirando comovida, uma manta extensa e pesada, que ao longo dos anos foi fazendo com pequenos pedaços de pano, que antes haviam tido honras de peças de roupa, com que havia já coberto o corpo, que a idade não atraiçoara aos olhares dos que a viam passar.

- Toma filha, esta é a melhor peça que te posso dar. As mãos estendiam-se, segurando nelas a manta em voltas dobradas, quase tantas quantas a vida já lhe dera por passado.

- Isso mãe ? Que posso fazer eu com essa manta velha feita de retalhos ? A formalidade da ocasião apenas reforçou a desilusão no quanto sentia singela o legado que ora via como herança.

- Filha, olha bem para ela. Olha para os pequenos pedaços de tecido com que a fiz. Aqui podes ver, um pedaço do primeiro vestido que a minha mãe me fez. Aqui, outro pedaço do vestido que usei quando ia para a escola e aqui, outro de quando me casei e este decerto que te recordas, pois foi do teu primeiro vestido. Foi com esta manta que fui tecendo com pedaços da minha vida, que me abriguei do frio, quando não tinha mais nada para aquecer o meu corpo.

- Mãe, bordaste aqui isto. Os olhos de Aghna ergueram-se, agora de surpresa, olhando na mãe os longos cabelos de seda que sempre admirara.

- Aqui no canto filha, bordei o meu e o teu nome. Fi-lo com fios do meu próprio cabelo, para que me sintas junto de ti quando te cobrires com esta manta. Na verdade, tal como me recordares, também eu sou como ela, um conjunto de retalhos de vida, feita de pessoas e de momentos, que pouco a pouco fui tecendo e juntando, para me fazer a mim própria. Foi com essa manta que sempre que senti frio, cobri a nudez do meu carácter, para ser quem sou.

domingo, janeiro 04, 2009

Minha Mãe ... o auto da viagem (25-12-1929 ... 4-1-2007)

- Quem és tu ? Pergunta-lhe aquela voz a coberto da noite.
- Eu ?! Sou eu mesma, filha de ninguém, que dá pelo nome do meu pai.
- Para onde vais ?
- Vou para além do nada, de onde ninguém ousou voltar e onde não quero chegar.
- Que horas são ?

- São horas do verbo, que as estrelas já anunciaram muito antes de mim.

- Que passes então.

Escolhida a sina, ergueu-se do ventre que repousava sobre um colchão de coral e conchas e entrou na barca, que a esperava ancorada à porta que não se fechara para deixar entrar pequenas ondas que chegavam até aos limites do quarto onde nascera.
Na proa, um homem agachara-se para pegar o cabo que o prendia umbilicalmente ao silêncio e com ele recolheu o ferro de fundear. Era chegada a hora de zarpar na legião ao som das sirenes e ao ritmo do bater nas solas que calçavam os que por ali passaram antes dela e que voltariam a chegar depois.
Mais atrás, a sorte escondeu a cara dos justos e com o negro da alma, foi lançando marcas na esteira deixada nos recortes das marés, que bandos de gaivotas e pelicanos iam debicando em voos picados do alto, como ordens dadas por um Deus esquecido sobre dunas nas margens.

- De onde vens ? Pergunta-lhe adiante uma voz azul, vestida de ferro, erguendo-se das águas vinda de estibordo.
- Venho daqui mesmo, onde o aqui e o além habitam o mesmo espaço.
- Que pretendes ?
- Quero tudo o que uma mão vazia pode dar a quem tem menos ainda.
- Que ofereces ?
- Nada menos que tudo o que ainda sei fazer para dar.

- Que passes então.

O vento soprou manso, em brisas grávidas de penas brancas, com que se vestiam as garças que iam pousando nas amuradas a olhar o horizonte e delas tirava-lhes o olhar para tingir a espuma da rebentação das ondas.
Uns cabelos de mulher faziam coro com o ondular das águas que vagas tomavam de assalto à ré, enquanto a roda de proa serpenteava na tormenta o destino da rota que as gentes haviam imposto ao leme e gravado em rombos no casco que a linha d’água teimava em ignorar.
Enquanto a barca cor de chumbo ia avançando, uma mulher santa vestida da mesma luz branca de quem se dizia ser filha, aproximava-se por bombordo, caminhando silenciosamente sobre as águas.

- Sabes quem és ? Pergunta-lhe em palavras que só o silêncio que aprendera a falar decifrara.
- Eu ?! Sou eu mesma, filha de ninguém, que dá pelo teu nome como dei antes pelo do meu pai.
- Sabes para onde vais ?
- Vou para além do nada, de onde ninguém ousou voltar e onde a vida me ensinou a querer chegar.
- Sabes que horas são ?
- Foram horas do verbo, agora minhas também, que as estrelas voltarão a marcar muito depois de mim.

- Que passes então.

A barca agarrou a maré e zarpou ao ritmo do cantar triste dos mastros que se despiam das velas, para as entregar de agasalho ao cálice sagrado que esventrava o corpo da mulher debruçada sobre a retranca, de onde as lágrimas escorriam em linhas de sal, donde o mar se alimentava na sede que não acabava.
Nas margens, mulheres de negro agitavam as vozes, num cântico quente que as mãos arrefeciam em orações escondidas, enquanto acendiam fogueiras tomando no farol da guia, a função, para lançar barcos e gentes ao embate sinistro no aflorar das rochas pelo calado dos navios.
Alguns, iam vendo mãe e filho, cada um de mãos agitadas nos remos de acácia, que a esteira denunciava ao longe a sotavento, onde o sol se punha, mesmo do lado de lá, de onde vinha diariamente o dia seguinte e onde haveriam de chegar, já cansados de gritar na noite.

Na praia, uma mulher desceu do altar dos tempos e chegou-se ao abrigo do ancoradouro, cuidando desembarcar apenas quem a ela se achegasse na imagem e na condição. Olharam-se as duas, enquanto os pés e as almas de ambas pisavam o mesmo tecto a que o chão elevara nas alturas, afastadas da faina que barcos e pescadores prosseguiam na indiferença, que o filho, no castelo da proa desconhecia, fazendo-se sozinho ao mar enquanto calçava as luvas sagradas da mesma cor com que iniciara as suas próprias mãos, que acharia sempre pequenas. As mães, essas, têm as mãos grandes.

- Que horas são ? Pergunta-lhe a mulher.
- É meia-noite e chegada a hora do descanso, que as estrelas hão-de anunciar para sempre aos que me amam.
- Para onde vais ?
- Vou para o Oriente eterno, onde nasce o Sol, para voltar a ser tudo.
- Quem és tu ?
- Eu ?! Sou Mãe, filha da luz que guiou a proa do meu barco, a quem o meu Filho chama agora pelo teu nome.

- Que passes então.

(Texto dedicado à minha e às "minhas" Mães de luvas brancas)