segunda-feira, dezembro 24, 2007

Só ... uma Noite de Natal

O cansaço dos preparativos de Natal já pesava quando as primeiras visitas começaram a chegar e à medida que chegavam, as prendas iam-se acumulando junto à árvore de Natal que ia aumentando de brilho ao som dos risos e das gargalhadas que perfumavam o ar.

Chegaram os pais que se juntavam aos tios no momento da chegada, acolhidos na corrida de braços abertos pelo neto e sobrinho que via de novo os avós paternos junto aos maternos que já os aguardavam. A lareira fazia coro ao conjunto, com o crepitar da madeira incandescente em chamas ondulantes de um calor envolvente.
Em seguida, cunhados e sobrinho juntavam-se-lhes trazendo consigo, tios e até o pequeno Ruca marcava presença em latidos e patas levantadas implorando pela atenção cuidada.

Na mesa que crescera ao longo da sala, os pratos e talheres iam sendo colocados ao ritmos das músicas natalícias que se repetiam sempre diferentes quando mais alguém chegava, e havia sempre mais alguém para chegar, ao sabor das recordações.

O bacalhau cozido exigiu a tradição junto com o polvo cozido e mais tarde o Perú recheado foi trinchado logo após o caldo de camarão, especialidade que nem pai nem filho dispensavam à mãe deste. Doces e bebidas completavam o conjunto e os elogios eram mais acesos quando se servia a aletria e as fatias douradas, quase sempre guardadas para o brinde da meia-noite feito com aniz e vinho do Porto, celebrando o início do 78º aniversário da mãe que devia o seu nome ao dia que ora começava.
Em diálogos e conversas, as piadas e anedotas mostravam o quanto comidos e bebidos estavam, condimentados pelos risos e sorrisos que em coros espontaneamente enchiam o ar.
No momento da abertura das prendas, os olhos vivos e despertos do pequeno Rui mostravam-se tão inquietos quanto as suas mãozitas no rasgar ávido do papel de embrulho, em busca de pequenos tesouros que a sua imaginação já buscara e tentara adivinhar na forma e volume dos embrulhos.

Já tardiamente, o cansaço e o espírito saciado pela felicidade e a presença dos que o coração reclamara, o sono ia tomando conta do corpo e já a alma cedera à vontade de adormecer para que assim, fosse legitimado o sonho que por momentos vivera acordado, antes da consciência do silêncio que reinava e do único talher que na verdade existia sobre a mesa junto das fotografias que cuidadosamente colocara diante de si por companhia.
Em seguida, já deposta a aliança sagrada, lançar-se-ia na noite na visita aos que amava dando um pouco de si a cada um, qual Pai Natal sem poder chegar a todos.

segunda-feira, dezembro 17, 2007

O milagre da rosa


O olhar atravessava a vidraça, uma vidraça invisível que só o tempo e a distância os separavam.
Vira um sem número de vezes aquele homem, sentado, olhando o jardim, com um silêncio quase ensurdecedor. O seu olhar era atento, tão atento que tomava no centro, tudo quanto alcançava na periferia e quando a olhava nos olhos, o silêncio tomava a forma das palavras que nenhum dos dois ousava dizer.
Periodicamente, com a cadência da vida aquele homem voltava ao mesmo lugar, como se viesse para alimentar a alma com tudo quanto via. Tinha fome daquela beleza toda que aquele jardim lhe oferecia. Já não era só o corpo quem lho pedia, era também a alma que lho exigia.
Trazia com ele, sempre o mesmo sorriso branco de aragem, que não se sabe ler excepto quando se sente o aroma de rosas, vindo da que elegantemente ele cuidava e tomara como sua, até ao momento que aguardava para falar uma linguagem que já não recordava.
Tantas as vezes que ela vira aquele homem, como se esperasse por algo ou alguém, que não aparecera durante anos e por quem aprendera a esperar com o tempo ao lado.

Nesse dia ela iria mudar tudo. Iria ver o mesmo jardim com os olhos dele e decidida, iriam partilhar o pão que nesse dia ela cozesse, como se procurasse com isso, saciar uma ausência que já não queria.
Firme, aproximou-se dele em silêncio e apontou-lhe generosa, o caminho que ambos percorreram até à porta da casa onde lhe serviria do mesmo que ela comesse ou bebesse, no mais genuíno gesto que conhecera de dádiva.

Já de saída, enquanto uma das mãos, lenta, parecia pentear com os dedos os cabelos dela, com a outra deixava-lhe o seu único bem, a sua rosa, que do tom pérola tomara agora a cor dos lábios.
Ela, das mãos, por destino daria àquela rosa a jarra mais transparente que ela conhecia, e que viria a revelar-se ser a escolha justa, pelos dias que a mesma duraria, majestosa e graciosa, preservando o aroma, tanto quanto a memória de quem a dera, o permitia.

Já passados os dias que as mãos já não contavam, preparava-se para votar aquela rosa à secagem entre as folhas de um livro, num gesto que apenas reservava para as flores que lhe eram especiais e que queria memorizar nas tábuas do tempo que vivera feliz.
Enquanto tomava nas mãos aquela rosa que se vergava ligeiramente, resignada à poda que a levara até ali, repara que do caule brotavam duas pequenas folhas, dum verde tímido que teimava em fazer viver o milagre que antes parecera não existir mais.
Surpreendida, iria agora levar aquele caule de volta ao jardim, onde com o homem que lha dera, o plantaria onde o sol mais chegasse e o frio poupasse.
Iria ver crescer aquele caule obstinado ao destino e as folhas que o enfeitavam, todos dias através da mesma vidraça, até que já com rosas feitas, o homem entrasse e lhas trouxesse, num novo ciclo de renascimento.

quinta-feira, dezembro 13, 2007

Letras à margem

A maioria de nós recorda os tempos de juventude, quase sempre associados a uma vivência despreocupada e sobretudo, indiferente ao que nos cercava. Políticos, governantes e a actualidade nacional e internacional eram como que uma bolsa de valores e de pessoas algo cinzenta e confusa, como actores de um filme a preto-e-branco que remetíamos impulsivamente para uma indiferença assumida.
Contudo, nem todos somos iguais e assim, alguns de nós observam para onde não olhámos e acabam por ver e surpreender-nos por aquilo em que não reparámos quando estávamos no mesmo lugar ou situação.

O Bernardo Azinheiro é um desses casos. Tem 15 anos e fascina-se nas artes do jornalismo. As letras e palavras saem-lhe das mãos como as notas e acordes de um qualquer instrumento tocado pelo talento e ouvido apurado.
O Bernardo adora ler, livros e jornais, apresentando uma cultura acima da média, que sustenta numa capacidade crítica e de observação que faria inveja a algumas das personagens que frequentemente nos invadem as casas através dos ecrãs de televisão.
Uma das suas paixões é a política e apesar da impulsividade que a idade lhe permite, quase sempre os argumentos da sua avaliação se baseiam numa lógica com nexo e de leitura inteligente e consensual.

Recentemente, brindei o Bernardo Azinheiro, de quem sou admirador confesso, com um blog, o “Letras à margem” (http://www.letrasamargem.blogspot.com/) que ele laboriosa e atentamente vai decorando com textos que nos surpreendem na forma e conteúdo, mas que para os quais, o convite à leitura se justifica plenamente.

Parabéns Bernardo e sabendo que os bons frutos nascem quase sempre de boas árvores, estendo o apreço e admiração a todos de quem herdaste tal dom de aprender a voar na escrita e navegar nas ideias e que por isso, de ti têm motivos de orgulho, como eu tenho de me deixares ser teu amigo.

terça-feira, dezembro 11, 2007

Pai... (16-5-1921 ... 11-12-2004)

Pai,
Onde estás ?
Para quando a nossa primeira conversa ?
Quando me ensinas tudo o que não sei ?
Que faço agora ? Quem me diz ?
Quem me acalma esta dor que não pára e não sei lidar com ela ?

Pai,
Onde estás ?
Porque se tornou silêncio as palavras que não disseste ?
Porque não se ouviram as palavras que eu gritei ?
Porque guardámos o abraço que ninguém viu ?

Pai,
Onde estás ?
Porque não me ensinaste a amar ?
Porque não sei quando me amam e me tatuam a alma ?

Pai,
Onde estás ?
Que faço agora ? Quem me diz ?

Pai,
Onde estás ?
Quem me acalma esta dor que não pára e não sei lidar com ela ?

Pai,
Onde estás ?

Pai,
Perdoa-me se não fui o filho que não desejaste.
Fui afinal, o resultado daquilo que não desejei.

Pai.

segunda-feira, dezembro 03, 2007

Um Luar de líros azuis


Sempre que perdia alguém importante, plantava uma árvore. Assim, voltou a fazê-lo mais uma vez. Desta vez, não na sequência do rito de um funeral em que se tivesse sentido acompanhado, mas numa perda a que o aconchego do choro não fora consentido.

Escolhera na homenagem uma pequena azinheira, árvore que já acolhera desde aparições a pecadores, já alimentara gentes e animais e onde a forma dos seus troncos e ramos recordam os caprichos da vida, serpenteando em direcção ao céu, tomando todo o sol em redor, devolvendo-o na forma de sombra aos que aí se abrigam.

Desde ela e em seu redor, plantara todos os lírios azuis que encontrara, numa despedida que estendera pela planície circundante, até muito mais além dos montes que formavam o horizonte.

Colocara na base uma pequena caixa feita de madeira de acácia, que revestira com um lenço sagrado de seda pura, bordado de cumplicidade, onde guardou um nome, que embrulhara suavemente em sons, sentimentos, abraços, palavras e uma tatuagem que guardara ciosamente para dias festivos que não chegaram, a que juntara uma parte do coração que agora batia em silêncio e que depositava também cerimoniosamente com beijos ternos de despedida.

Sabia assim que a sua árvore não ficaria só e viria todas as noites ao luar, guardá-la enquanto observava as flores do campo, aprendendo com elas a esperança de que o dia seguinte traria de novo o Sol, que ele, também aguardava serenamente enquanto lhe entregava o último abraço numa despedida que não desejara eterna.